Resenha | A odisseia de Hakim Vol 1 – Da Síria à Turquia

Em A odisseia de Hakim Vol. 1 – Da Síria à Turquia somos levados, ao lado de do protagonista que dá título à obra, por uma longa e triste jornada em busca de um lugar no mundo, um lugar para chamar de lar, porque a Síria já deixou de ser esse lugar para o jovem Hakim.

Fabien Toulmé (arte e texto da obra) se sensibilizou com a situação das centenas de refugiados que chegam ao continente europeu de diversas formas, a maioria clandestinos, a totalidade fugindo de algum flagelo de seus países de origem: fome, guerra, ditadura, economia em frangalhos, disputas territoriais etc.

capa do quadrinho A odisseia de HakimEntão Toulmé pensou em como poderia participar mais ativamente desse processo, conhecer melhor essas histórias e as pessoas pro trás delas, desvelá-las para o mundo ou ao menos trazer alguma luz sobre o tema da melhor forma que podia: fazendo uma belíssima história em quadrinhos.

Toulmé é um artista cuja sensibilidade é sua maior qualidade como quadrinhista, suas obras anteriores à A odisseia de Hakim não deixam margem para dúvidas: Duas Vidas e Não era você que eu esperava; ambas são HQs onde o autor mostra não só seu belo traço, mas um domínio de narrativa pleno e capaz de sensibilizar qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo.

Como em seus trabalhos anteriores, Toulmé também se injetou como parte da narrativa de A odisseia de Hakim Vol. 1, só que diferentemente de Não era você que eu esperava, uma obra total e completamente autobiográfica, aqui Toulmé se inseriu como narrador-personagem, mas não o faz utilizando-se do recurso de contar a história de seu ponto de vista, ele está lá, ele aparece na narrativa, mas como entrevistador, como investigador que capta a história contada por Hakim, esse sim a grande estrela dessa Odisseia.

Toulmé encotra Hakim – Um relato visual

Assombrado pelos números assustadores envolvendo os refugiados que chegam ao continente europeu em busca de uma nova vida, Fabien Toulmé buscou uma forma de narrar esse tema através da ótica dos próprios refugiados, é quando o artista consegue contato, por intermédio de uma amiga, com Hakim Kabdi, jovem refugiado sírio que vive em um pequeno apartamento em Aix-En-Providence, França, junto com esposa e filho.

Após várias tentativas, Toulmé e Hakim finalmente se encontram para transformar juntos o poderoso relato do rapaz, agora já com 30 anos, que precisou largar família, emprego, amigos e história de vida na Síria para escapar da ditadura de Hafez Al-Assad e depois de seu filho Bashar Al-Assad.

O relato de Hakim começa ainda em sua infância, uma época onde tudo parece um pouco mais leve pela ótica de uma criança que, anos depois, resolveria seguir os passos do pai e também ser um jardineiro.

Mas como em todo regime de opressão e ditadura, as coisas só pioraram: extorsão, vigília constante, doutrinação, prisões arbitrárias, abuso de autoridade; um constante estado de medo pairando sobre tudo e todos que não estivessem alinhados com a perspectiva do governo e seus desmandos.

Por alguns momentos o leitor chega até a desconfiar que Hakim simplesmente vivia dentro do livro 1984 do escritor George Orwell, dado o crescente estado de medo e opressão.

Com a situação cada vez pior na Síria, Hakim chegou a ser preso, interrogado e torturado sem nenhuma motivo, com pouco dinheiro e muito medo, pois um de seus irmãos já havia desaparecido sem deixar vestígios, Hakim decide sair do país enquanto isso ainda é possível.

E assim começa a peregrinação de Hakim em busca de uma vida melhor. Fabien Toulmé faz jus ao relato que recebeu e realmente dá todo o tom do que é uma verdadeira odisseia para essa caminhada: odisseia é 1) uma longa perambulação ou viagem marcada por aventuras, eventos imprevistos e singulares; 2) uma narração de viagem cheia de aventuras singulares e inesperadas.

Nada menos do que isso está nessas páginas, páginas nas quais é impossível não se sensibilizar com o drama de Hakim, de seus familiares e amigos pisoteados e obscurecidos pelos desmandos de uma ditadura.

Uma das coisas que mais me prendeu em toda a HQ — e olha que são tantas coisas maravilhosas que ela tem — é o fato de que Hakim, o personagem, é além de real no sentido de que estamos falando de um ser humano que teve parte de sua vida adaptada para uma HQ, ser não só sua própria voz e sua própria história, mas acima de tudo ser a voz e a história de milhares de refugiados em todo o mundo. O coletivo manifesto no indivíduo, a parte que fala pelo todo.

Quando Toulmé dá voz à odisseia de Hakim, narrada pelo próprio Hakim, Toulmé também dá voz para todos os refugiados que precisaram partir para qualquer lugar, de qualquer modo, sujeitos a qualquer tipo de perigo apenas para poder escapar de algum perigo ainda maior…

Um perigo tão maior que até vale a pena arriscar a própria vida numa travessia de oceano em uma embarcação precária com mais centenas de pessoas ao seu redor com o mesmo intento; singrar estradas desertas de madrugada perseguido por cães farejadores e policiais armados com ordem até mesmo de atirar se for necessário. Essa voz é a de todas essas pessoas, essa odisseia é coletiva…

Quando Toulmé desenha Hakim, está desenhando milhares de imigrantes, não precisa muito para entendermos como é fácil substituir a Síria e seus ditadores por qualquer outro país cuja situação esteja tão precária e o medo tão enraizado que qualquer outro lugar, por mais estranho que seja, seja minimamente melhor. Quando Hakim foge, milhões fogem com ele, quando Hakim chora, milhões estão chorando ao mesmo tempo.

Não que o drama do jovem Hakim seja genérico, não é isso que estou dizendo, o que estou dizendo é que este jovem rapaz sírio carrega um estigma, uma marca que até mesmo pessoas de outros países, tão diferentes dele, carregam esta mesma marca e o peso que ela traz consigo; é um drama pessoal e ao mesmo tempo imensamente coletivo esse do estigma de ser imigrante em tempos tão complexos como estes em que vivemos.

Hakim é tanto conteúdo, continente, história, personagem, narrador, indivíduo e coletivo, presente e ausente; uma alegoria, uma metáfora, uma ficção tão real, mas tão real que até mesmo as sutilezas do traço de Toulmé não são capazes de amenizar o que essa história tem para dizer.

Encarar a desconfiança e o preconceito daqueles cujo país adotam como seu novo lar, a saudade dos amigos e familiares deixados para trás, os fracassos constantes em cada nova parada, o cansaço físico e mental, a preocupação com os que ficaram são alguns dos fantasmas que acompanham Hakim em sua odisseia contada de forma irrepreensível por Toulmé, um artista que demonstra domínio pleno da narrativa dos quadrinhos: páginas de seis quadros ou painéis que ocupam uma página inteira, visual bidimensional misto entre linha clara e o estilo ágil das charges e tiras jornalísticas, com cores chapadas em tons bem leves, com predominância de um tom de azul bem claro, sempre contrastando com tons amarelados igualmente suaves, ora bem claros, ora mais escuros ambos funcionam em conformidade com a necessidade da narrativa.

Uma beleza ímpar, simples (não simplória, que fique claro), extremamente funcional e repleta de emoções diversas onde não serão poucas as ocasiões em que o leitor irá sorrir e alguns quadros depois sentir um aperto no peito e os olhos marejarem… A união da habilidade de Toulmé em fazer narrativas visuais cheias dessa miríade de sentimentos não poderia ter encontrado tema melhor do que o drama dos imigrantes.

Hakim é não só protagonista de sua odisseia, é também o veículo pelo qual dramas similares espalhados pelo mundo chegam até nós, mas dessa vez sem barreiras, sem fronteiras, sem medos, sem nenhum tipo de preconceito.

A odisseia de Hakim Vol. 1 – Da Síria à Turquia está disponível no catálogo da Editora Nemo desde abril de 2020; o segundo volume, A odisseia de Hakim Vol. 2 – Da Turquia à Grécia, chegou às livrarias em novembro passado e dá continuidade a este relato não só emocionante, mas acima de tudo necessário para todos nós, estejamos em casa ou não. A palavra tem poder, a imagem também…

A odisseia de Hakim | O Autor – Fabien Toulmé

Leitor dos quadrinhos franco-belgas clássicos (Tintin, Lucky Luke, Asterix) desde a mais tenra idade, Fabien Toulmé viajou por vários países (inclusive o Brasil) ao longo de dez anos, trabalhando como engenheiro civil.

Em 2008, retornou à França com o desejo de se dedicar aos quadrinhos. Sua estreia no mundo das graphic novels foi em 2014 com Não era você que eu esperava, um relato sensível do nascimento de sua segunda filha, Julia, que tem síndrome de Down.

Fabien Toulmé, autor de A odisseia de Hakim Vol 1 – Da Síria à TurquiaEm 2017, nos brindou com Duas vidas, uma belíssima história sobre a coragem e o amor entre irmãos. Em A odisseia de Hakim, Fabien nos apresenta, em três volumes, a história real de um jovem sírio que vislumbrou a face mais sombria da humanidade e teve de enfrentar duras provações em sua luta pela sobrevivência e por uma vida digna.

A odisseia de Hakim | Sinopse e Ficha

Do celebrado quadrinista francês Fabien Toulmé, autor de Não era você que eu esperava e Duas vidas

“Nunca pensei que isso pudesse me acontecer. Mas me dei conta de que qualquer um pode virar um ‘refugiado’. Basta que seu país desmorone. Ou você desmorona junto, ou você vai embora.”

A história real de Hakim, um jovem sírio que teve de deixar tudo para trás: sua família, seus amigos, seu negócio próprio, seu país. Tornando-se assim um “refugiado”.

Porque a guerra estourou, porque o torturaram, porque o país vizinho parecia capaz de oferecer-lhe um futuro e segurança.

Um testemunho poderoso e comovente sobre o que é ser humano em um mundo, muitas vezes, desumano.

  • Título original: L’Odyssée d’Hakim T01 : De la Syrie à la Turquie
  • Páginas: 272
  • Formato: 17 x 24 cm
  • Acabamento: Brochura
  • Edição: 1
  • Ano de publicação: 04/2020
  • Selo: Editora Nemo

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Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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