Resenha | “Contos Negros”, de Ruth Guimarães

Nossa cultura popular é rica em histórias, costumes e narrativas de origens diversas; algumas mais comunas das nossas origens afro, outras de nossas origens indígenas e outras advindas de nossa colonização.

Em Contos Negros, da autora Ruth Guimarães, os leitores irão se deparar com uma coletânea rica e diversificada de histórias curtas coletadas pela autora com foco em narrativas comuns às comunidades negras de nosso país.

Contos Negros é fruto de um extenso trabalho de pesquisa e curadoria realizados por Ruth Guimarães, ambos advindos da necessidade de pontuar a presença das tradições e narrativas que permeavam o imaginário das comunidades negras em nosso país.

capa do livro "Contos Negros", de Ruth GuimarãesA autora se deparou com rico manancial original ao mesmo tempo que encontrou a influência e contágio da perspectiva dos povos afro por parte dos escravocratas europeus, resultando assim em narrativas que já tinham uma versão prévia e que passaram por algum tipo de adaptação e/ou reconstrução para algo similar, mas ainda assim com novas intenções.

Apesar de não ser um volume muito longo, 128 páginas, Contos Negros é gigantesco em significado e tem em si mesmo uma importância ímpar entre coletâneas de mesma proposta: narrativas típicas de povos negros, coletadas e organizadas por uma escritora negra… Maior significado que isso é difícil de achar, não?

Produzido ainda nos anos 1980, Contos Negros é um marco de nossa literatura regional e étnica, rememorando nossas raízes, nossas origens e um tanto significativo de nossas tradições orais.

Demorou muito tempo para que tais escritos fossem dados à luz e chegassem aos leitores brasileiros; o rico trabalho que culminou em Contos Negros e Contos Índios recaiu sobre a Faro Editorial que, como de costume, nos entregou um livro fisicamente muito bonito com títulos em cores, muitas notas de rodapé, divisórias de capítulos com grafismos e motivos africanos e claro, uma bela capa com título em relevo e verniz localizado.

O trabalho da Faro Editorial com os escritos de Ruth Guimarães me lembraram muito a excelência com que a editora lançou anos atrás os igualmente brilhantes Para Amar Clarice e Para Amar Graciliano; livros que analisam de forma extremamente detalhada as obras desses mestres de nossa literatura.

Mas Contos Negros difere das obras citadas no sentido de que aqui podemos prestigiar o trabalho da própria Ruth Guimarães em mãos, ao invés de um extenso estudo das obras gracilianas e claricianas.

Faro Editorial

Contos Negros | Mitologia, Tradição e Narrativas

Contos Negros se divide em quatro tomos principais, cada um contendo de 3 a 5 contos em sua constituição: Mitos Iorubanos, Cosmogonia afro-brasileira, Três Contos de Exemplo e Os Animais na Mitologia Afro-brasileira são as quatro classificações que a autor propõe para organizar em tom de similaridade e proposta narrativa as histórias que coletou.

Os contos são bem curtos e fica claro em cada um as estruturas que a autora usou para agrupá-los em cada sessão do livro. As lições de aprendizado, as de cunho moralizantes, as de criação do universo e das regras que o regem, as histórias edificantes ou de punição; de algum modo todos esses elementos comumente encontrados na narrativa de fantasia ou nas fábulas estão aqui contidos e devidamente representados. Fato este que nos mostra o empenho da autora em sistematizar e organizar bem o material que coletou.

Outro ponto positivo dentro da coletânea é que ela trás todo o espírito das contações de histórias, comumente associados ao nosso período da infância com nossas tias, avós e mães narrando aventuras e fábulas de todo tipo para uma roda de crianças hipnotizadas pelo puro e simples encanto contido na voz dessas contadoras e contadores de histórias de outrora.

Ruth Guimarães, autora de Contos Negros e Contos Índios
Tradição oral, cultura e lirismos estão presentes nas obras da autora Ruth Guimarães

Como Literatura, a obra de Ruth Guimarães trás ao leitor uma miríade de pequenas histórias que vivem e sobrevivem no imaginário popular e são trazidas a nós da forma mais próxima possível de suas versões em circulação a época do trabalho de coleta da autora; para os amantes do gênero literário do Conto, o pequeno livro é prato cheio e farto.

Como Pesquisa Cultura, o livro Contos Negros dispensa qualquer tipo de explicação ou intenção minha de apontar sua importância e necessidade. Escritora e editora fizeram pela Literatura afro-brasileira um avanço que soma forças às iniciativas de demais editoras no sentido de reforçar e trazer à luz as matrizes afro que tanto enriqueceram as diversidade cultura do país.

Como livro de contos, esta é uma resenha da perspectiva geral da coletânea, de sua organização e importância no contexto geral; por possuir contos bem curtos e alguns com versões ou com tonalidades bem conhecidas de outras vertentes de folclore, minha dica aqui é mais no sentido de reforçar a importância e o manancial cultural deste bela obra muito mais do que entrar nos detalhes de cada conto ou de se esse ou aquele conto me agradou mais ou menos (algo muito comum em qualquer coletânea o leitor ter seus preferidos).

Nesse sentido prefiro deixar a cargo do leitor fazer sua eleição conforme o gosto do freguês. Acenda sua fogueira, traga os amigos, faça uma roda e que comece a contação de histórias sob uma linda noite de luar; essa herança é nossa e precisamos nos apossar dela sem medo algum de enriquecermos.

Contos Negros | Sobre o livro

Em geral, em torno de uma fogueira. É só ficar de mão no queixo, sentado em cima das toras, escutando. O círculo das caras atentas arde ao calor das chamas. Todos se voltam para o narrador, num tropismo original.

Não é que o tempo esteja sobrando, não é isso. Em verdade, não existe mais o tempo. Acabou-se o seu império sobre os homens. Não se cuida nem da hora, nem do correr dos instantes. O tempo é o fluir da história. Tempo e espaço se contam na vida dos príncipes e das princesas e do seu povo encantado.

Assim, a história vem lenta. Assim, vem comprida. Com repetidos pormenores, cumulativa, misteriosa e sutil, dentro do sutil da noite misteriosa. Transportamo-nos para um outro mundo habitado por duendes e fantasmas, por espíritos bons, pelos bichos que falam.

Coisa linda de se ouvir e de se viver. A empatia é tanta, que estamos tão do lado de lá, quanto Alice no País dos Espelhos. Dá pena haver crianças que nunca ouviram casos narrados assim.

Estas histórias são, pois, nossas, brasileiras e africanas, genuínas e espontâneas, inventadas pelo povo. Correm por aí (ainda, mas não por muito tempo). Cumpriram e cumprem a contento a alta função principal das histórias: a de entreter. E, através do entretenimento, realizam, certamente, esta coisa extraordinária: predispõem-nos ao amor do Bem, do Belo e do que é Nosso. Mais não lhes poderemos pedir.

Contos Negros | Sobre a autora

RUTH GUIMARÃES, romancista, contista e tradutora, foi especialista em folclore. Passou a infância numa fazenda que o pai administrava, no sul de Minas Gerais. Brincava com os filhos dos trabalhadores e deles ouviu causos, fábulas, histórias de príncipes, histórias de assombração. Ela diria, mais tarde, que as histórias de lobisomens, de mulas sem cabeça, bruxas e toda a corte demoníaca, povoavam a sua memória.

Para se libertar desse medo, começou a reunir todas as histórias que ouviu. Aos 20 anos, já morando em São Paulo, mostrou seu trabalho a Mário de Andrade, que a orientou por alguns anos sobre as técnicas de pesquisa folclórica.

Esse importante livro, Filhos do medo, foi lançado em 1950. Ruth Guimarães publicou, ao longo dos seus 93 anos de vida, 51 livros, entre os quais oito voltados para histórias recolhidas da tradição oral. Ocupou a cadeira 22 da Academia Paulista de Letras.

Contos Negros | Ficha Técnica

  • Título: Contos Negros
  • Autora: Ruth Guimarães
  • Formato: 16×23 cm
  • Páginas: 128
  • ISBN: 978-65-86041-39-2
  • Editora: Faro Editorial
  • Preço: 34,90
  • Categorias: Crônicas e Contos

 

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Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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