Resenha | Oryx e Crake, de Margaret Atwood

Em Oryx e Crake acompanhamos os solitários dias da vida do Homem das Neves, talvez o último ser humano vivo em nosso planeta. Ele na verdade não é um “homem das neves” propriamente dito, ele já foi Jimmy e também foi testemunha dos acontecimentos que culminaram com o fim da raça humana como a conhecemos neste perturbador livro de Margaret Atwood.

Ele está velho e cansado, seus dias são cheios de calor e suas noites de frio enquanto dorme na copa de uma árvore para evitar um ataque surpresa dos lobocães ou dos porcões; duas raças criadas nos laboratórios das megacorporações misto de complexo científico, comércio, condomínio de luxo e tudo mais.

É um futuro não tão longe assim esse do Homem das Neves, cheio de tecnologias fantásticas, mas ainda assim muito similares a coisas que temos agora; o grande passo mesmo estava na engenharia genética que, ao mesmo tempo que curava uma miríade de doenças, criava outras tantas num ciclo de comércio entre pandemias e suas curas.

capa do livro Oryx e CrakeA Estética também estava muito mais evoluída: transplante genético, cirurgias plásticas inimagináveis para melhorar tudo na constante busca pela vida eterna, ou o mais próximo disso: cor da pele, dos olhos, tipos de cabelo, órgãos mais resistentes a todo tipo de doença e autorregenerativos, ossos mais duros, lábios mais macios, odores melhores… tudo pode ser customizado no seu corpo.

Enquanto o Homem das Neves passa em revista seus dias de infância, juventude e idade adulta, constantemente ele é assediado pelos Filhos de Crake, uma raça aprimorada humanóide com peles de cores extravagantes, corpos perfeitamente esculturais e dotados de uma beleza ímpar e ao mesmo tempo inquietante, totalmente artificial segundo o gosto do já enrugado último homem da Terra.

Mas são as crianças dessa nova raça de humanos que mais se empenhavam em procurar o Homem das Neves toda vez que encontravam em sua praia algum artefato do mundo de antes, de quando outros humanos ainda estavam por lá.

Alienados desse mundo, as crianças da raça dos Filhos de Crake sempre vem entoando seu canto “Homem das Neves, ó Homem das Neves”, dando-lhe cacos de garrafa, pentes, chaves de carro, qualquer lixo deixado para trás e perguntando-lhe de onde vieram aquelas coisas e quais seriam suas utilidades. E assim o Homem das Neves vai lhes contando parte da história do mundo que havia antes de haver os Filhos de Crake.

Ao rememorar seu passado, de uma época de quando ainda era um Jimmy criança na casa dos pais, ou ao lado da linda e distraída Oryx na cama após o sexo, ou dos jogos de computador com o inteligentíssimo Crake, o Homem das Neves vai passando em revista, não necessariamente em ordem cronológica, os fatos que não só marcaram sua memória, mas acima de tudo fatos que marcaram o destino da humanidade.

Apesar de ser o narrador e detentor das últimas memórias humanas e, de modo literal ser o protagonista dessa melancólica ficção distópica, o solitário e cansado Homem das Neves não é seu principal personagem, ele está aqui apenas para nos lembrar dos passos de uma trajetória que o colocou no caminho do genial, frio, distante e igualmente solitário Crake durante seus anos de colégio em um dos muitos complexos que sua família residiu conforme seu pai mudava de emprego.

Figuras complementares entre si, Crake e Jimmy dividiam horas de seus dias disputando games de estratégia de forma obsessiva, com vitórias do genial Crake a em 9 a cada 10 partidas. Enquanto um era extremamente inteligente, focado e empenhado em ser o melhor em tudo que se propunha a fazer no ramo científico, o outro era disperso, falastrão, mediano em tudo e ligado ao ramo das artes e da palavra, ainda que, como tudo que fazia, de modo bem genérico.

arte conceitual temática de oryx e crake

Mas não somente Crake divide os holofotes dessa história com Jimmy: Oryx é parte central dessa jornada ao ocupar anos a fio as memórias de um jovem adolescente que viu um lindo rosto de criança  num site de pornografia e se tornou obcecado não só pelo rosto, mas pela história por trás daquela criança que o atormentou em sonhos, pesadelos e anos depois em carne e osso em sua cama.

Ironicamente quase tudo que sabemos sobre a misteriosa Oryx — o que não é muito — nos é contado por tabela através do que ela quis que Homem das Neves soubesse. Aparentemente indiferente a quase tudo, inclusive a si mesma, Oryx é um misto de idealização fetichista, objetificação masculina e independência individualista.

Fosse uma personagem escrita por um escritor, eu poderia questionar muito do modo como esta personagem se insere no livro, mas Atwood tem uma série de cartas na manga em relação a essa mulher que detém um poder imensurável sobre os outros dois personagem com os quais divide a trama do livro. E fica o conselho: não a subestime.

Os papéis de Oryx e Crake na história do Homem das Neves são um labirinto de pequenos fatos, pequenas mentiras, jogos virtuais, atitudes simplórias demais ou questionáveis demais. O charme de um contraste com a frieza do outro e no meio de ambos está o mediano Jimmy, o normal Jimmy, o garoto comum sem nada demais, sem nenhum tipo de brilho ou característica especial como beleza ou inteligência prodigiosa.

Oryx e Crake | Memória, Ciência, Linguagem e Amizades no fim do mundo

O efeito da prosa de Margaret Atwood é sempre o do impacto, a autora canadense não economiza em conceitos ao nos levar num passeio por um mundo que levou ao extremo a divisão entre ricos e pobres, entre privilegiados e oprimidos.

Oryx e Crake é uma realidade de luxo, glamour, Ciência de ponta nos ricos complexos empresariais onde a elite científica criava e recriava criaturas, remédios e (por que não?) doenças de um lado, enquanto do outro havia o lixo restante desse processo, sucateamento, pobreza, prostituição, doenças desconhecidas, subempregos e poluição eram a tônica nas chamadas Terras de Plebeus (plebelândia em algumas traduções da obra).

Nesse cenário de caos, luxúria, futilidade, consumismo desenfreado e alienação de seus personagens é que Atwood nos leva, ora aos empurrões, ora segurando gentilmente nossas mãos, por essa jornada — que também é de solidão, tristeza, abandono e autoindulgência de nossa espécie — por uma estrada de reflexão sobre ética na pesquisa científica, no comércio de todo tipo, no consumismo desenfreado por qualquer porcaria criada para atender necessidades artificiais e das consequências de nossa alienação diante das pistas óbvias do caminho que está diante de nós.

A princípio o leitor talvez não embarque nos primeiros relatos do Homem das Neves envolvendo sua conturbada vida familiar de classe média alta privilegiada dentro dos complexos, nem de sua obsessiva relação com Oryx e seu obscuro passado, nem de suas aventuras adolescentes hackeando sites da internet e jogando estranhos games com Crake depois da escola; mas nesses pequenos e primeiros momentos que estão delineando uma história pessoal, vão também se delineado os rumos do que anos depois vive o Homem das Neves enquanto vê uma nova raça de seres pós-humanos frutos dos delírios de um gênio crescer e florescer após o declínio dos que vieram antes.

É irônico notar mais uma vez que é a história oral, o relato íntimo e pessoal que dos protagonistas de Atwood que os ligam a nós e nossos íntimos anseios. Isso está lá em O Conto da Aia — que dispensa qualquer tipo de comentário —, está em Vulgo Grace, no recente A Odisseia de Penélope entre outras obras da autora.

Aqui em Oryx e Crake, uma espécie de alegoria da história de Adão e Eva, com o Homem das Neves sendo o último elo entre o mundo dos filhos de Adão que se forem enquanto os filhos de Crake se erguem para dominar um paraíso cheio de ruínas que lhes são desconhecidas enquanto o velho Homem das Neves lhes conta fábulas, inventa origens e conceitos completamente novos para esses pós-humanos desprovidos de qualquer ganância ou medo diante desse mundo completamente estranho que os cerca.

ilustração temática baseada na obra Oryx e Crake

A estrada de tempo que separa Jimmy do Homem das Neves é a perfeita síntese da estrada que separa qualquer ser humano de sua tenra infância de alienação, passando por sua adolescência de futilidades e frivolidades ao lado de amigos vazios em momentos sem sentido até a chegada da velhice, da maturidade capaz de olhar pro passado com a sabedoria e o distanciamento necessários para entender em que momento se deveria ter agido da forma certa, que frutos ter plantado para colher posteriormente.

Talvez Jimmy seja desinteressante demais, chato demais e é aquela parte de nós que normalmente queremos deixar para trás justamente por essas características, mas o Homem das Neves é o oposto disso, sendo aquela parte de nós que guarda com carinho as memórias de velhas fotos, de momentos fugidios, de amigos bobos e atitudes idiotas, porém cheias de riso e leveza típicos da juventude. A ladainha dos Filhos de Crake vai ficar ecoando em sua cabeça por um longo tempo… homem das neves, ó homem das neves.

Mais do que uma bela ficção científica, Oryx e Crake é uma pequena ode à solidão, à saudade, ao abandono, aos atos de conservação da História através da memória, ao mundo que ainda há e que ainda poderá haver, mas Oryx e Crake também é uma carta de repúdio a tudo que o ser humano é capaz de fazer ignorando qualquer consequência negativo de seus atos se nisso houver algum lucro imediato, este livro é um lembrete de que tudo tem seu preço e nada tem valor.

Dona de uma prosa limpa e elegante, Atwood concentra sua escrita na impressão pessoal, no ato comum, no estado de desligamento do cotidiano de seus personagens para nos enredar por uma trama cheia de pequenas pistas deixadas aqui e ali num quebra-cabeças cuja maior parte já está montada pelo mundo em que vive o Homem das Neves, a parte ainda incompleta vai sendo gradativamente construída por e para nós ao lado do narrador-personagem que em suas muitas idas e vindas no tempo nos revela detalhes e situações-chave de um intrincado processo de transformação dos personagens e do mundo que os cerca no livro.

Os prcões numa fazenda genética corporativa
Ilustração conceitual dos Porcões, porcos geneticamente alterados para serem “doadores” de órgãos para os humanos dos complexos. Em Oryx e Crake a Biologia atingiu a produção em massa.

Apesar de grande parte dessas peças ausentes estarem no passado do Homem das Neves, outras tantas estão em seu presente ao lado dos Filhos de Crake e em sua inocência letárgica, característica lhes dada muito antes do mundo se despedaçar e aqui e ali, nesse futuro caótico onde um velho humano guia o povo do futuro para uma vida desprovida de violência, arte, religião, ídolos e consumismo nos deparamos com outro emaranho de pistas, ora para nos dar mais respostas, ora para nos dar mais perguntas sobre esse fascinante mundo em frangalhos e seus estranhos habitantes.

Muito mais do que nos dar uma fascinante obra cheia de conceitos instigantes, Atwood nos atira num mundo mordaz, divertidamente perigoso, original e que ao mesmo tempo brinca com vários conceitos da Ficção Científica; não são poucos os momentos da leitura de Oryx e Crake que senti a obra flertar com o Cyberpunk (Neuromancer), com a Distopia Ambígua (Admirável Mundo Novo), com a Distopia Totalitária (1984 e Fahrenheit 451) ao mesmo tempo que se mostra um livro extremamente autêntico e único. Ousaria dizer que vemos aqui o nascimento de uma genuína Distopia Sócioecológica… ou seria uma Distopia Ecofuturista?

Mas isso não importa, o que importa é que esta obra instiga reflexões de toda ordem, uma característica de Atwood, claro, nos entregando momentos divertidos, melancólicos, violentos e singelos, tudo permeado por alguns de seus temas preferidos como as armadilhas da memória, juízo de valores individuais VS valores coletivos, desmantelamento da linguagem pelo tempo, a tecnologia contra o homem e o ambiente, controle irrestrita das autoridades, redução do humano ante as estruturas macro da sociedade de consumo e claro, as lutas de classe que aqui são marcadas pela presença dos constantes paralelos entre os imensos complexos corporativos e a caótica plebelândia.

ilustração temática baseada na história do livro Oryx e Crake
Ilustração dos incríveis animais criados nos complexos (por Narciso Espiritu Jr.)

Um Oryx e Crake é um delírio bonito e igualmente melancólico, uma história cheia de nuances, de filigranas e que decola de forma vertiginosa em seus últimos capítulos que vão aumentando em velocidade e intensidade a sensação de desesperança e aflição dos protagonistas e dos leitores. É uma corrida frenética impossível de abandonar até a última página.

Se você é um leitor atento aos temas como ética na ciência, regulamentação nas pesquisas com seres vivos, manipulação genética, consumo desenfreado, explosão populacional, domínio das ciências de ponta sobre as manifestações artísticas, segregação social em um cenário futurista com tons sombrios e toques de drama, então venha caminhar ao lado do Homem das Neves enquanto contempla torres que se deterioram no mar ao longe.

E prepare-se: ao terminar Oryx e Crake tenha logo em mãos O Ano do Dilúvio e MaddAddão, suas continuações, porque a curiosidade vai bater forte.

Oryx e Crake | A Autora

O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood

Uma das maiores escritoras de língua inglesa, Margaret Atwood foi consagrada com alguns dos mais importantes prêmios internacionais, como o Man Booker Proze (2000) e o Príncipe de Astúrias (2008), pelo conjunto de sua obra, além de ter sido agraciada com o título de Cavalheira de L’Ordre des Art et Lettres, na França.

Tem livros publicados em mais de 30 idiomas e reside em Toronto, depois de ter lecionado Literatura Inglesa em diversas universidades do Canadá e dos Estados Unidos e Europa.

Transita com igual talento pelo romance, o conto, a poesia e o ensaio, e se destaca por suas incursões no terreno da ficção científica, em obras como O conto da aia e Oryx e Crake, ambos publicados pela Rocco.

Oryx e Crake | Sinopse e Ficha Técnica

Nada de carros voadores ou raios verdes que desintegram pessoas e coisas. Em Oryx e Crake, Margaret Atwood retoma a ficção especulativa que a consagrou em O conto da Aia e cria uma distopia absolutamente original, um lugar onde a civilização e a linguagem – e tudo mais que seja próximo ao que conhecemos como humanidade – desapareceram quase completamente.

Primeiro de uma trilogia que inclui O ano do Dilúvio e se encerra com Maddadão, Oryx e Crake consolida Margaret Atwood como um dos grandes nomes do gênero ficção científica, com histórias marcadas por questões éticas e morais sobre o futuro da humanidade.

Em Oryx e Crake, a prosa sofisticada de Atwood viaja até um futuro próximo, ainda bastante familiar, mas ao mesmo tempo estranho e bizarro para o leitor. O mundo é apresentado como um lugar pós-apocalíptico e melancólico, habitado por criaturas biologicamente modificadas e tomadas pelo vício. O narrador do romance é o Homem das Neves, um sobrevivente do antigo planeta, que um dia chamou-se Jimmy. No início da trama, ele está em cima de uma árvore, vestindo um velho lençol, lamentando a perda de sua amada Oryx e de seu amigo Crake.

Os flashbacks de Jimmy acabam revelando ao leitor que ele testemunhou as experiências genéticas que ajudaram a transformar o planeta num território devastado.

  • Autor: Margaret Atwood
  • Tradução: Léa Viveiros De Castro
  • Preço: R$ 39,90
  • Páginas: 352
  • Formato: 14×21 cm
  • ISBN: 978-85-325-3113-1
  • Assuntos: Romance/novela, Ficção Científica/Distopia
  • Selo: Rocco

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Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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