Especial dia do Quadrinho Nacional: Entrevista com o quadrinhista Gus Morais

Dia 30 de janeiro é o Dia do Quadrinho Nacional. A essa altura do campeonato, você, leitor do Ponto Zero já deve saber disso. Caso esteja chegando agora, marque na agenda a data, é importantíssimo somar leitores, fãs e acima de tudo, consumidores da nona arte versão brazuca.

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De 29 de janeiro até hoje, 1 de Fevereiro fizemos uma pequena parte no que tange disseminação, divulgação e troca de ideias no segmento com artistas de variados estilos, com seus personagens próprios, material circulando e mais coisas sendo produzidas para breve: Felipe Cagno, Reginaldo Nakamura, Gil Mendes e agora Gus Morais integra nosso especial com sua entrevista.

A extensão da nossa homenagem a esse dia começou antes e terminou depois não à toa: falar de quadrinho nacional, falar com nossos artistas que estão na batalha é muito mais que fazer um editorial cheio de palavras bonitas, uma meia dúzia de jargões e pinçar aqui e acolá umas frases de efeito e fingir que se discutiu, que se aprounfou no tema e depois da data comemorativa simplesmente virar as costas para a produção nacional como se nada fosse feito durante uma ano todo… no mínimo hipocrisia de muitos veículos de comunicação cuja grande função é só a de “surfar a onda” de que está “fazendo sua parte”.

Estamos longe de expor de forma satisfatória as ânsias, desejos e objetivos deste mercado apenas com a visão de quatro autores tão distintos entre si, quanto uma HQ nacional é distinta de uma HQ americana, mas temos a ciência de que o trabalho feito gradativamente ao longo do último ano foi decisivo para que nós mesmos pudéssemos enxergar com outros olhos as HQs nacionais. Gus Morais encerra nosso pequeno especial para a data com sua contribuição ao lado de colegas de escrita e traço, mas deixa aberta as portas para que possamos sempre ter foco no que fazemos e no que queremos levar ao nosso leitor. Que 2016 seja positivíssimo para nosso mercado, que as editoras se fortaleçam, mas que acima de tudo o material autoral e independente tenha seu lugar ao Sol.

Com a palavra Gus Morais. Boa leitura…

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1 – Primeiramente muito obrigado pelo tempo para nosso papo, agora que tal uma apresentação de Gus Morais para nossos leitores?

Gus Morais: Sou ilustrador e quadrinista. Publico histórias em quadrinhos em meu blog autoral, o gusmorais.com, há mais de cinco anos: são histórias em formatos curtos, como contos, que abordam temáticas variadas – na maioria das vezes, passeando por algo próximo do realismo fantástico. Publiquei, também, tirinhas no caderno de tecnologia da Folha de S. Paulo entre 2012 e 2015.

2 – Em que momento de sua trajetória você parou e pensou em trabalhar com HQs? Qual foi aquele material que você pegou, leu, releu e disse “quero trabalhar com isso um dia”?

Gus Morais: Um dos primeiros materiais que me fascinou foi “V de Vingança”, do Alan Moore, por volta dos 18 anos. Antes disso, gostava muito dos quadrinhos do Groo e Sandman na adolescência, mas não pensava em me tornar um quadrinista. Comecei a criar quadrinhos durante a faculdade de forma muito tímida – naquela época, algumas obras que me chegaram às mãos foram especialmente inspiradoras: Estigmas, do Mattotti, os livros do Joe Sacco e Maus, do Art Spiegelman são alguns exemplos.

gusmorais_azulpiscina3 – Aproveitando essa vibe de trajetória, quais a grandes influências em seu trabalho? Não só HQs (nacional e internacional), mas também Literatura, cinema, séries, games… essas coisas todas do universo pop-nerd.

Gus Morais: Na literatura, gosto muito do trabalho de alguns escritores: Lygia Fagundes Telles, Cortázar, Ítalo Calvino, Nelson Rodrigues, Saramago, Mutarelli… aprecio muito, no geral, autores que tem essa pegada de “realismo fantástico” ou que são mestres na arte de contar uma boa história curta. Tem alguns poetas também, como o Roberto Piva e o Alberto da Cunha Melo, cuja influência tem aparecido mais em meu trabalho. Essa coisa da influência é um pouco difícil para mim de indicar: não tento copiar ou seguir estratégias e caminhos de nenhum autor em específico, mas algumas visões de mundo ou aspectos de suas obras podem ecoar aqui e ali em algumas HQs. Mais recentemente, conheci o trabalho do Murilo Rubião, que acho que tem bastante proximidade com o que gosto de fazer nas HQs.

Dos quadrinhos, em específico, tenho gostado muito do trabalho de alguns artistas japoneses como o Tatsumi e o Shigeru Mizuki, que tem uma pegada urbana e meio sombria muito interessante.

4 – Falando em projetos, como você constrói os seus trabalhos? Por onde você começa? Há alguma passo-a-passo no seu caminho ou você deixa as coisas fluírem por si mesmas?

Gus Morais: No geral, o meu processo sempre foi muito caótico: às vezes o quadrinho começava de um desenho; em outras, começava de alguns trechos de textos anotados em um caderno. Ultimamente, no entanto, tenho percebido que meu processo tem ficado mais “apurado”: vou construindo as histórias, sem pressa, às vezes por semanas, às vezes por dias ou meses, em blocos de texto no computador. Aí de tempos em tempos eu as abro, altero trechos, retiro outros, acrescento algum fato, personagem ou acontecimento… e, assim, as histórias vão ficando prontas cada uma ao seu ritmo. Uma vez prontas, parto para o processo de rascunhá-las no papel de forma bem simples. Feito isso, se sentir que a narrativa ficou massa, parto para a finalização com nanquim e colorização digital.

5 – Você esteve no FIQ, não é? Fale um pouco dessa experiência de estar em um grande evento. Como é o público, a relação de vocês artistas com quem consome o produto de vocês, essas coisas…

Gus Morais: Estive sim! Já fui a três edições do FIQ e, posso dizer que em cada uma, tive uma experiência diferente. Nesta última, por exemplo, tivemos muitos quadrinistas lançando trabalhos bacanas – a questão das vendas ficou um pouco em segundo plano, uma vez que havia muita concorrência… mas tive ótimas trocas de ideias com apoiadores de meu novo livro no Catarse, conheci outros quadrinistas, voltei com alguns quadrinhos de autores que não conhecia pra casa. Destes, uma surpresa especial foi o “A Passeio” do Daniel dos Santos e do Ciro. Mas tem muitos outros que ainda estão na prateleira esperando para serem lidos.

6 – Falando em eventos ainda, os últimos anos trouxeram uma boa gama de eventos de quadrinhos, uns bem grandes como a CCXP, outros menores, mas igualmente conhecidos. Você acredita que esses eventos estão difundindo a cultura de leitura de quadrinhos nacionais realmente ou podem ser “bolhas” isoladas que se contraem com o tempo?

Gus Morais: Eu acredito que difundem sim. Na CCXP, por exemplo, isso é bastante claro: muita gente interessada em cultura pop em geral, que as vezes está acostumada mais com material estrangeiro, passa pelas nossas mesas e fica empolgada com a variedade e profundidade das propostas dos autores nacionais. O pós-CCXP é um negócio interessante: pipocou gente me adicionando no Facebook para conhecer mais meu trabalho durante quase um mês e meio. Acho que ainda vai um tempo para haver um mercado nacional consolidado, mas dá para perceber um interesse crescente e uma produção nacional cada vez mais cuidadosa e rica.

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7 – Nesses eventos há uma concentração enorme de artistas, vocês aproveitam esses momentos para trocar ideias, fazer parcerias e criar coisas juntos?

Gus Morais: Sim, com certeza. Nasce muita coisa dessas interações nos eventos. Eu vejo gente com trabalhos afins se conhecendo, por exemplo, e reaparecendo anos depois em outras feiras com novas publicações em conjunto. Trocas de ideias rápidas com amigos quadrinistas já me trouxeram confiança de por onde poderia andar ou ousar mais em meu trabalho. Lembro de uma conversa com o cartunista João da Silva: eu explicava que meus quadrinhos estavam muito psicologicamente pesados e egocêntricos e que gostaria, de em um momento, fazer um trampo mais político. E ele, que tem um trabalho bastante crítico, me disse que o “psicológico é político também”. Não sei se foi exatamente com estas palavras, mas quando o João me disse isso, eu percebi uma porta de criação para novas histórias que, antes, não cogitava ou não tinha tanta confiança. Um encontro desses às vezes vale por anos de pesquisa e estudo.

8 – Vejo muitos artistas reclamando de questões logísticas de nosso mercado: extensão territorial, custos de impressão, dificuldades na distribuição etc. Qual tem sido sua maior dificuldade hoje para criar, produzir e escoar seus trabalhos impressos?

Gus Morais: Como publico quase tudo que faço online, eu não costumo reclamar destes aspectos. O meu trabalho é acessível a quem quiser acessando a internet. Claro que, em algum momento, gosto de colocá-lo em formato impresso – mas confesso que por ora minha preocupação é mais lapidar meu trabalho e aprofundá-lo do que ter milhares de livros em várias livrarias pelo país. Nesse sentido, minha preocupação é mais em conseguir criar uma dinâmica de produção de quadrinhos que coexista de maneira mais estável com meu trabalho comercial, que são minhas ilustrações para editoras.

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9 – Há algum plano para ingressar nos sites de assinatura on line para Hqs como Social Comics, por exemplo?

Gus Morais: Sim, minha ideia é ter meus livros em breve nessas plataformas.

10 – Mande aí um recado para os nossos leitores do PZ e claro, para os fãs do seu trabalho

Gus Morais: Aos leitores do PZ que quiserem conhecer meu trabalho, gostaria de convidá-los a dar uma passadinha no gusmorais.com e sortear alguma HQ lá do arquivo para ler. Meu trabalho é bem variado, então acho que dar uma “sapeada” é uma forma de ir entendendo melhor o que faço. Aos que já conhecem e me apoiam, só tenho a agradecer: desde o começo nos quadrinhos tenho um grupo não muito grande, mais muito fiel, de leitores que tem se mostrado muito abertos mesmo perante às mudanças todas em meu estilo. Dos quadrinhos nostálgicos e sentimentais de anos atrás, para os quadrinhos mais crus e sombrios de agora, percebo que esse pessoal continua interessado – o que me motiva a continuar desenvolvendo e experimentando coisas novas de forma livre, seja lá por onde meu processo criativo me levar. O sucesso da campanha do meu novo livro no Catarse, aliás, foi essencial para que eu ficasse novamente ciente disso. Só tenho a agradecer, mesmo.

Value Gus! Que 2016 seja um ano de intensa produção do nosso mercado, de nossos artistas e editoras. Obrigado pelo tempo, atenção e disposição em colaborar com nosso especial. Grande abraços da equipe do Ponto Zero.

Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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