Resenha | “Pílulas Azuis” de Frederik Peeters

Já vai longe o tempo em que HQs eram somente uma leitura de minutos despretensiosos e deixadas ali em algum canto qualquer para acumular poeira, não que isso não exista mais, no entanto o número de obras que superou a leitura rápida e desprovida de sentimentos, reflexões, emoções diversas e textos densos já ganhou espaço e público fiel.

Nesse segmento de obras mais densas e intimistas você já pode acrescentar aí Pílulas Azuis do quadrinhista Frederik Peeters, lançado aqui no país pela Editora Nemo.

Que fique claro, Pílulas Azuis, apesar do tema complexo e espinhoso, não é um daqueles quadrinhos antipáticos, metidos a besta e com pretensão de ser a reinvenção da nona arte, pelo contrário, a obra é justamente o oposto do quadrinho sisudo, aborrecido, pedante e intragável.

Pílulas Azuis é uma obra extremamente simples em sua abordagem, execução e diálogos sobre amor, vida a dois, decisões e escolhas. Simples, porém divertidíssima.

pílulas azuis - capa
Capa da edição nacional de Pílulas Azuis

Autobiográfico, Pílulas Azuis é a história de como Peeters conheceu Cati, o grande amor de sua vida e atual esposa. Dito isto, Pílulas Azuis poderia ser só mais uma história de amor qualquer regada a muito dramalhão, melancolia e autodestruição: Cati é portadora do vírus HIV, seu filho, fruto do primeiro casamento, também é soropositivo.

A doença que se tornou o grande flagelo para o mundo nas décadas de 1980 e 1990 é o rinoceronte branco às costas de Peeters e Cati…

Nascido de um pequeno punhado de ocasiões fortuitas, sorte, destino, acaso e conspirações cosmologicas, Cati e Peeters se esbarraram algumas poucas vezes antes de se entregarem a uma relação bonita, sincera, cheia de uma ternura oprimida pelo medo da moça em perder o rapaz tímido, introvertido e que desenhava quadrinhos quando soubesse da barreira que afastava Cati do restante do mundo “normal”.

Cada encontro inicial do jovem casal é retratado de forma tão natural que não são poucas as ocasiões que é fácil se visualizar ali naqueles dois personagens de gibi que parecem tão reais… não, espera… eles são… 

Representados, idealizados, estilizados, mas ali naquelas páginas desenhadas com tinta preta é perceptível a humanidade com Peeters resolveu contar e compartilhar sua história de amor com o mundo.

Da descoberta do amor, seguida pela descoberta do fantasma do HIV que sempre estaria ali sobre e sob a pele de Cati, dos momentos de intimidade, dúvidas, medos, angustias e descobertas não só no relacionamento do casal, mas deles para com amigos, parentes e familiares, Peeters estendeu a mão ao leitor e o convidou a entrar em sua vida particular, expôs não só sua relação com a mulher que ama, mas também sua visão de mundo a partir de um experiência única e que por pelo menos duas décadas era um tabu quase intransponível.

Talvez exatamente por ir direto ao tabu, por falar de AIDS e de sexo, de AIDS e amor, de AIDS e relacionamento a dois, de AIDS e convívio social, de AIDS e de família de uma forma tão fluída, natural e, pasmem, bem humorada, Peeters consegui sair do lugar comum tanto na abordagem do tema quanto em sua execução.

Pílulas Azuis tinha tudo para ser chata, arrastada e deprê, mas não é. Não são poucas as ocasiões que mente criativa do autor parece dar uns saltos malucos nas questões existencialistas e filosóficas de forma exageradamente engraçada e nonsense.

Um diálogo com um mamute, o rinoceronte branco na sala do médico, o sofá de dois lugares que flui num mar sem fim enquanto o mundo ao seu redor simplesmente se desvanece na conversa divertida, no papo engraçado, nas afinidades de dois jovens que estão tateando suas próprias personalidades em busca do outro dentro de si.

Pílulas Azuis é uma história cheia daqueles momentos mágicos quando você descobre na outra pessoa uma parcela sua que te atraí mais e mais para ela… Peeters fala de si, fala da descoberta de Cati e nessa narrativa acaba falando para muita gente comum em qualquer lugar do mundo…

Falar para pessoas com ou sem HIV, esse é outro grande trunfo da obra: sobressair o monstro que assola essas três pessoas (o filho de Cati tem destaque divertidíssimo na obra quando necessário) e ir além dele e mostrar a vida para além do que, anos atrás, era uma sentença de morte anunciada.

Frederik Peeters, autor de Pílulas Azuis
Frederik Peeters

Com um traço estilizado, quase caricatural, Peeters é bem econômico em sua arte, mas tem um charme em sua simplicidade, na agilidade do traço preto da tinta que define bem contornos e utiliza umas boas áreas de sombra densas quando necessário.

Acho que talvez um pouco mais de luz e sombra ajudasse a dar mais “realidade” à obra, porém nada que desabone o visual que, na verdade, casa muitíssimo bem com a fluidez e informalidade do texto da obra.

Talvez em uma abordagem mais sisuda e séria do tema proposto por Peeters, uma arte igualmente mais “fechada” pudesse ser o ideal, no entanto acredito que seria uma arte pouco efetiva para a maneira singela e natural com que Pílulas Azuis é narrada.

Fluidez, essa é a palavra que faz o casamento perfeito entre a texto e imagem… sem esquecer que Peeters é ótimo para desenhar expressões e diversas foram as passagens da HQ que me fizeram emular durante a leitura as experessões de alegria, espanto, tristeza ou medo dos personagens. Como estou dizendo desde o começo, Pílulas Azuis é diversão garantida.

A edição da Nemo é do jeito que deveria ser, uma HQ com cara de livro, ou um livro com cara de HQ (?). O papel Offset é ideal para o traço de Peeters que é todo preto, como se trata de um papel de alta alvura e pouca reflexibilidade de luz, fica tranquila a leitura em qualquer ambiente.

Praticamente li a obra toda indo de um consultório a outro na ocasião de meus exames do check up anual… coincidência ou não, as duas passagens de consultório da história eu também estava em consultórios, o que me fez imaginar ainda mais toda a tensão e apreensão dos personagens da obra que estavam em uma situação infinitamente maior e mais complexa que um simples check up anual de rotina.

No mais, para o leitor que quer algo divertido e simples, mas que mantenha ainda assim o pé no chão e trate de temas atuais para nossa sociedade, Pílulas Azuis é indicadíssimo.

Não é uma obra que, por exemplo, tenha o peso e densidade de um Maus, são instâncias diferentes, abordagens diferentes, narrativas diferentes, mas ainda assim Pílulas Azuis garante seu lugar ao sol como um HQ de importância, mais acima de tudo, uma HQ bem escrita, desenhada de forma engraçada e leve em uma história intimista de cumplicidade, amor, respeito e aceitação.

Tem lugar de respeito e admiração na estante, sem dúvida alguma, assim como faz jus ao título que praticamente todos tem atribuído ao material: Pílulas Azuis é um dos melhores lançamentos de 2015.

Pílulas Azuis

PÍLULAS AZUIS

Nesta narrativa gráfica pessoal e de rara pureza, por meio de um roteiro simples e de temas universais (o amor, a morte), Frederik Peeters conta sobre seu encontro e sua história com Cati, envolvendo o vírus ignóbil que entra em cena e muda tudo, e todas as emoções contraditórias que ele tem de aprender a gerenciar: amor, raiva, compaixão.

Pílulas azuis nos permite acompanhar, sem nenhum vestígio de sentimentalismo, através de um prisma raramente (senão nunca) abordado, o cotidiano de uma relação cingida pelo HIV, sem deixar de lançar algumas verdades duras e surpreendentes sobre o assunto. Apesar da seriedade do tema, Pílulas azuisé uma obra cheia de leveza e humor. Não é à toa que é considerada por muitos a obra-prima de Frederik Peeters. Uma das mais belas histórias de amor já publicadas.

  • Título original: Pilules bleues
  • Páginas: 208
  • Formato: 17 x 24 cm
  • Acabamento: brochura
  • Editora Nemo
  • Edição: 1
  • Data de publicação: 19/06/2015

 

Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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