Almas selvagens – Parte 1: H.G. Wells e A Ilha do Dr. Moreau

Três autores de renome, três obras diferentes, inteligentes e originais, um tema espinhoso, difícil e delicado de se abordar e para o qual muitos viram o rosto para fingir que a conversa não é com eles: a vida dos animais e o trato que nós, seres humanos, dispensamos aos nossos irmãos de almas selvagens. E o que H.G. Wells, J.M. Coetzee e Grant Morrison têm a nos dizer sobre isso? Tudo e mais um pouco.

A maneira como nossa espécie se relaciona com outras espécies é basicamente predatória e, com algumas exceções, de cordialidade, de subserviência e domesticidade, mas no geral entramos no jogo da sobrevivência do mais forte para matar.

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Capa de “A ilha do Dr. Moreau” lançado pela Alfaguara

É realmente um tema muito espinhoso e poucos são os autores capazes de dar a ele uma abordagem significativa, seja na forma de ficção literária, ensaio social ou filosófico.

E há aqueles que fazem tudo isso em uma única e certeira tacada ao produzir uma obra de forma e conteúdo originais o suficiente para marcar estes temas espinhosos com sua visão de mundo, não com um xeque-mate definitivo sobre eles, mas com sensibilidade, coragem e sensatez na forma de se pensar. Wells, Coetzee e Morrison fizeram isso magistralmente.

O tema de como os outros animais são tratados por nós é conhecido e está em grande evidência, não de hoje, mas é inegável que vem ganhando projeção rápida devido ao amplo apelo das redes sociais e do acesso a elas pelo grande público, mas a voz anônima, a voz comum, dificilmente produz algum resultado satisfatório ou de peso, até porque cyber-ativismo sem presença no mundo real e nada são a mesma coisa, ou seja, recheio de pastel de vento.

Por vezes a voz do intelectual, do artista tem um peso fundamental e decisivo para que o senso comum acabe por entender e defender certas causas. O poder da obra de arte e as reflexões contidas, por exemplo, nas falas de um personagem ou nas críticas mais ou menos implícitas em uma dada obra são capazes de retirar muitos de suas zonas de conforto.

É nesse campo que, acredito, que esses três nomes têm importância nesse debate, sem firulas linguísticas, de vida e morte no que se refere ao modo como tratamos os animais, sobretudo no aspecto ético dentro dos campos industriais, médicos e tecnológicos.

H.G. Wells e a Ilha das Almas Selvagens

H.G. Wells, nosso primeiro nome, dispensa apresentações, mais ainda assim vale reforçar alguns pontos: nascido Herbert George Wells (Bromley – Inglaterra, 21 de setembro de 1866), ficou mundialmente conhecido como H. G. Wells, o autor morreu em Londres no dia 13 de agosto de 1946, tem entre suas obras quatro pilares da literatura de que, algumas décadas depois, seriam importantíssimas para o surgimento da Science Fiction do século XX: A máquina do tempo (1895), A ilha do Dr. Moreau (1896), O homem invisível (1897) e o soberbo A guerra dos mundos (1898), todos relançados no Brasil pela Editora Alfaguara, mas também disponíveis nos catálogos de uma infinidade de outras editoras devido ao fato das obras de Wells já estarem em domínio público

Nosso foco inicial na obra de Wells é no sombrio e perturbador “A ilha do Dr. Moreau”, uma espécie de fábula sombria e ao mesmo tempo delicada, emocionante e de uma sensibilidade fantástica, não à toa um grande clássico do horror. O livro aborda a estranha aventura de Edward Prendick após ter de ficar, a contragosto, em uma estranha ilha onde bizarros experimentos são realizados em animais por um cientista chamado apenas de Dr. Moreau.

Aí está o X da questão, são experimentos sem nenhuma ética, nenhum pudor, nenhum cuidado e são reflexo do ego de nossa raça que não tem limites e nem escrúpulos para infligir dor e abusos aos outros, sejam humanos ou animais.

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H.G. Wells

Exilado na ilha, Prendick divide seu espaço com o cientista Moreau, seu assistente Montgomery e um serviçal de feições animalescas chamado M’Ling. Os demais habitantes da sinistra ilha são chamados de Povo Animal, a princípio, por suas feições grotescas que misturam aspectos humanos com estruturas de animais, adiante Prendick descobre que não são humanos deformados, mas sim animais deformados cirurgicamente para adquirirem aspectos humanoides.

Em uma época que os avanços da ciência e da medicina não estavam no patamar que estão hoje, Wells escreve sua história com base nas condições de produção e conhecimento de sua época para descrever as terríveis experiências realizadas por seu Dr. Moreau, uma metáfora ao médico louco Frankstein de Mary Shelley, sem sombra de dúvidas, mas que, ao invés de violar os cadáveres de humanos para construir sua criatura, o Dr. Moreau de Wells opera suas atrocidades em criaturas ainda vivas.

Moreau é um talentoso vivisseccionista cujo talento e conhecimento só rivalizam com o tamanho de seu ego e de sua falta de respeito pela dor infligida às suas “peças”, suas “obras”, como ele mesmo costuma chamar os animais nos quais realiza alterações, enxertos, cortes, incisões, injeções químicas e demais procedimentos necessários para dar a essas pobres criaturas o aspecto humanoides.

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Capa do DVD do filme de 1977

Trados como mero “barro” a ser moldado pela vontade do médico louco, os homens-animais que resultam do trabalho de Moreau são sujeitos a dores extremas, já que são, sobretudo, vivisseccionados ainda conscientes do que lhes é feito na “casa da dor”, nome dado ao laboratório do médico louco pelas feras quando postas em “liberdade” na ilha junto com os demais seres do povo animal.

Não satisfeito com o processo de dilaceração física das criaturas, Moreau também lhes destrói a mente animal através de sugestões e processos químicos que tornam as feras conscientes de sua nova existência “humana”. É o homem sempre querendo impor-se como centro do universo e tentando, a todo custo, impor ao mundo que este seja sua imagem e tudo que não é esta imagem precisa ser transformado nela, nem que seja através da dor extrema infligida aos outros, humanos ou não.

O povo animal vive segundo os preceitos da “Lei”, um conjunto de regras que tem por objetivo inibir a natureza animal, como por exemplo, andar sobre quatro patas, comer carne, beber sangue, usar a língua para tomar água, subir em árvores entre outros preceitos recitados constantemente para manter viva a “consciência humana” imposta sobre a essência animal de cada criatura mutilada.

Eis aí o grande fracasso do experimento de Moreau: a alma do animal, sua essência de fera, seu espírito livre não pode ser moldado como barro mesmo que sua carne, a simples matéria, tenha sido adulterada, mudada e até certo ponto destruída. São feras, são selvagens, essa é sua essência, sua natureza e são livres, não temos nenhum direito sobre suas almas e nem sobre o chão por onde caçam e correm.

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Marlon Brandon como Moreau e Val Kilmer na adaptação de 1996

Metáfora de muitas visões e interpretações, “A ilha do Dr. Moreau” é uma obra que facilmente transcende o tempo e o espaço de sua criação, dialogando com os muitos debates e protestos sobre os atuais experimentos científicos que utilizam animais como cobaia e as muitas implicações sobre a ética e o limite desses experimentos, a obra se manteve firme e forte no imaginário coletivo, não só pela forma e conteúdo literário, mas acima de tudo pela reflexão extremamente competente e atual que Wells nos brindou.

A literatura fantástica de H.G. Wells, mesmo travestida de fábula sombria, reflete a falta de escrúpulos humanos no que se refere à imposição da vontade de nossa raça sobre seres que julgamos inferiores ou desprovidos de consciência e de essência.

Ao considerar os animais como matéria bruta por serem inferiores a nós, a obra de H.G. Wells acaba também por nos lembrar que no lugar dos animais poderiam estar sendo mutilados outros seres humanos caso a mente doentia de Moreau os considerasse igualmente inferiores, já que por inúmeras vezes as criaturas do povo animal são tratados como seriam tratados os doentes mentais e loucos de toda espécie.

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Cena de “A Ilha das Almas Selvagens” (1932), primeira adaptação cinematográfica baseada no livro de Wells

A vida dos animais quase nada significa para os humanos em sua quase totalidade, Moreau é o reflexo do que nós, seres humanos, somos capazes de fazer para obter algum resultado prático ou mero capricho e vaidade de nossos egos. Para o cientista que brinca de “deus”, recriando os animais à sua imagem de homem, essas criaturas inferiores que são as feras sem sentido na vida, são tão somente mero produto, mera forma plástica a ser trabalhada em prol de um ideal estético de evolução dos limites da ciência em construir algo.

A duras penas tudo isso cobra seu preço, pois uma alma livre, livre e selvagem, não pode ser domada e os preceitos da “Lei” do povo animal, assim como as leis dos homens, podem ser quebrados, inclusive contra quem as criou.

Cena do longa de 1996
Cena do longa de 1996

Sucesso de crítica e público de longa data, clássico da literatura mundial, tanto nas vertentes de literatura sci-fi quanto de terror, o livro “A ilha do Dr. Moreau” ganhou três adaptações cinematográficas.

A primeira versão para telona foi o longa “A Ilha das Almas Selvagens” de 1932, a segunda adaptação foi lançada em 1977 e tem como destaque no elenco Burt Lancaster como o Dr. Moreau e Michael York no papel do personagem de Prendick. 

A terceira versão foi lançada em 1996 e tem no elenco Marlon Brandon como Moreau e Val Kilmer no papel do personagem de Prendick.

As versões tem muitas diferenças em relação ao texto de Wells, principalmente no que diz respeito a criação de um par romântico adicionado às tramas cinematográficas, algo para tornar a condução narrativa mais, digamos assim, palatável ao grande público.

Mas ainda assim os três filmes estão no imaginário do público, sobretudo as duas primeiras versões já consideradas clássicos do cinema de horror.

Na segunda parte de nosso especial o tema é abordado pela perspectiva do livro “A vida dos animais” do escritor J.M Coetzee, justamente com o viés da temática da consciência tanto dos animais quanto de nossa espécie.

Link para a PARTE 2 de Almas Selvagens
Link para a PARTE 3 de Almas Selvagens

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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