Almas selvagens – Parte 2: J.M. Coetzee e a vida dos animais

O escritor sul-africano John Maxwell Coetzee é uma daquelas pessoas realmente interessantes, não só por ser um escritor espetacular, mas por acima de tudo um daqueles tipos introspectivos, calados, sisudo, sérios e que nunca, nunca mesmo sorri em público.

Aspectos que podem muito bem lhe garantir o rótulo de pedante e arrogante, duas características que as pessoas adoram atribuir a quem pouco lhes sorri gratuitamente.

Engano, pois bem atrás da máscara impassível da aparente frieza do escritor, há uma alma selvagem, daquelas inquietas, inconformadas e que expressa tudo isso através da Literatura, de primeira, diga-se.

o autor J.M. Coetzee em plalestra
J. M. Coetzee proferindo palestra sobre os temas de seus livros

Não à toa Coetzee ilustra a segunda parte de nosso especial sobre a relação entre seres humanos e animais pela perspectiva da ficção. A obra em questão é “A vida dos animais”.

Fruto de duas palestra que Coetzee foi convidado a conduzir nas chamadas Tunner Lectures em 1998 na universidade de Princeton, o livro se divide em duas partes distintas: uma obra ficcional metalinguística e uma análise desta obra.

A primeira parte de “A vida dos animais”: Elizabeth Costello

A primeira parte é pura ficção e metalinguagem. Coetzee, ao invés de realizar uma palestra tradicional, optou por utilizar sua célebre personagem Elizabeth Costello em um relato ficcional em que a personagem, também escritora e alter-ego do autor, é convidada a proferir uma palestra também em um encontro acadêmico da área de letras e literatura.

Aí mais uma vez reina a genialidade do autor ao colocar nas palavras de sua personagem pensamentos que podem ou não serem os seus, assim como também coloca nas vozes de outros integrantes da história argumentos e contra-argumentos que também podem ou não serem seus. Provavelmente todos são.

capa do livro "A vida dos animais" do escritor J.M. Coetzee
Capa de “A vida dos animais” lançado no Brasil pela Companhia das Letras

Oriunda do livro homônimo, Elizabeth Costello é uma personagem criada para da voz a muitos dos pensamentos de Coetzee, não à toa é seu alter-ego mais conhecido do grande público, já que o autor tem alguns outros personagens com a mesma função de Costello.

Na história-palestra, a personagem Elizabeth Costello enfrente uma sociedade que se recusa a olhar para as questões que ela aponta ao defender com afinco que nós, seres humanos, somos cruéis com qualquer tipo de animal pelo simples motivo de não os entendermos como criaturas conscientes, pensantes e capaz de conduzir relações conosco além da mera servidão.

Vegetariana ferrenha, Costello se hospeda na casa do único filho e tem na nora Norma sua maior rival fora da palestra, dentro dela são os intelectuais de todo e qualquer tipo, inclusive os que se recusam a participar do debate fechado para professores e intelectuais oferecido pela universidade que convida a velha escritora.

Entre as principais ações humanas combatidas por Costello estão o que ela chama de “fábricas da morte”. Todo tipo de matadouro ou de processo pelo qual centenas de animais são mortos ou aprisionados para que a raça humana possa fazer usufruto de algum atributo como alimentos, pesquisas de medicamentos, matéria-prima como couro e por aí vai são alvo na palestra.

Geradoras de fortunas ao redor do mundo, as chamadas “fábricas da morte” acabam por forçar com que um sem número de pessoas acabe por negligenciar seu real funcionamento e trato para com os animais em virtude dos benefícios proporcionados por elas.

Para alfinetar e provocar sua platéia, Costello recorre ao expediente mais clássico do tema: comparar o que fazemos com os animais com o que os nazistas fizeram aos judeus na segunda grande guerra mundial. Exemplo que garante a insatisfação de intelectuais com extrema facilidade por diversos motivos.

Entre outros pontos Costello, que fala por Coetzee e por muita gente, também aborda a relação da personificação animal na ficção e na literatura através de uma análise de poemas e textos de cunho literário, o que, por fim, nos leva ao que Coetzee queria dizer com “A vida dos animais”: o que a ficção está fazendo por este tema? Ou melhor ainda, “O que a literatura está fazendo por esse tema espinhoso, delicado e macabro?”.

Obviamente a conclusão não é tão simples assim, nem para quem acompanha Costello nem para quem acompanha Coetzee nesse belo e instigante exercício de criatividade para com o tema de nosso trato para com nossos irmãos de almas selvagens.

A segunda parte de “A vida dos animais”: reflexões sobre obra de Coetzee

Tão curioso e instigante quanto o trabalho criativo de Coetzee, foram as reflexões que ele causara em outros participantes das Tunner Lectures em Princeton. Quatro intelectuais de áreas diversas se debruçaram sobre Elizabeth Costello e o que Coetzee diz através dela. Marjorie Garber, Peter Singer, Wendy Doninger e Barbara Smuts traçam diferentes perspectivas sobre os pontos de vista que Coetzee expõe sobre os animais.

capa do livro Elizabeth Costello do escritor J.M. Coetzee
Capa de Elizabeth Costello, livro escrito por J.M. Coetzee, lançado no Brasil pela Companhia das Letras

Sem intenção de desnudar cada um desses pontos de vista, já que não é esse meu objetivo, quero deixar claro que só pretendo frisar mais evidentemente que, apesar de ser uma palestra apresentada através de uma obra literária, o trabalho de Coetezee foi debatido e analisado de diferentes pontos de vista, da filosofia, da literatura, da ética, da biologia e claro, da linguagem, já que que as Tunner Lectures são exatamnete um encontro da área das letras.

Meu obejtivo aqui é explicitar que uma boa obra, uma boa literatura é capaz de provocar as reflexões necessárias sobre certos temas, neste caso, nosso trato para com os animais.

Não que haja soluções ou que tudo mude do dia para a noite, mas ao se propor a debater qual o obejtivo da ficção nesses temas e como eles devem ser abordados, algum passo em direção ao progresso já está sendo feito e, dentre as quatro análises-reflexões feitas sobre a palestra literária de Coetzee, a que mais me chamou a atenção foi a proferida por Peter Singer.

Singer utiliza exatamente o mesmo recurso metalinguístico de Coetzee ao por uma palestra na forma de um relato ficcional que expõe, através da boa escrita, os argumentos de uma boa palestra.

O texto de Singer é basicamente um relato de uma manhã que antecede, em um mês, sua participação nas Tunner Lectures para analisar A vida dos animais.

Singer e sua filha adolescente Naomi trocam divertidas análises sobre o tema e sobre como Coetzee vai apresentar Elizabeth Costello dentro da mesma situação que ele.

As observações de Singer chama a atenção por serem tão naturais quanto as de Costello e sutilmente o professor aponta um fato interessante: Coetzee apresenta seus argumentos na forma de Costello e, logo de antemão, apresenta os possíveis questionamentos que sua obra pode causar, primeiramente através de Norma e depois através dos outros pensadores dentro da história, inclusive o próprio filho de Costello.

Singer aponta que, quando Costello está se perdendo em seus argumentos apontamentosm, Norma simplesmente vem e diz que ela está “se perdendo”, fato que complica a possível réplica ao que está em jogo na apresentação de Coetzee.

Sabiamente a decisão coube a jovem filha de Singer que simplesmente diz: “belo truque. Não é coisa fácil de replicar. Mas por que você não usa o mesmo truque na réplica?”.

E temos, disparadamente, a melhor das quatro reflexões por simplesmente ser uma boa ficção consciente do mundo real e, acima de tudo, que tem em seu cerne, senão os melhores argumentos, mas ao menos as reflexões e pensamentos voltados para o mundo mundo lá fora.

Sem mais delongas, deixo o convite ao leitor para que conheça A vida dos animais, não é o melhor livro de J.M. Coetzee, mas com certeza é um belo exercício de criatividade, com uma ótima exposição e clareza de ideias por parte do escritor e de quem se propõe a analisar o material que ele entregou para as Tunner Lectures, mostrando assim que a Literatura, a boa Literatura sempre tem as duas faces da moeda: dialoga com a realidade através da representação ficcional da mesma.

Link para a Parte 1 de Almas Selvagens
Link para a Parte 3 de Almas Selvagens

Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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