Festa No Céu | Ou como rir com a Morte

Há muitos anos que o mercado de animações tem sido badalado e rentável para os grandes estúdios, o gênero sempre foi uma forma simples e lucrativa de contar boas histórias e no meio delas passar críticas, valores e lições, tanto para os pequeninos quanto para os grandões.

Festa no Céu (The Book of Life no original, 2014) não é diferente dessa essência via de regra; mas guarda em si e em seu tema algo mais em relação a quase todas as outras animações modernas: Festa no Céu fala sobre a morte… com muito bom humor e cores, muitas cores…

Metáfora, analogia, crítica sutil, crítica velada, alegoria, fantasia e fatos sempre estiveram de mãos dadas com os filmes de animação. O longo histórico Disney está aí para comprovar filme após filme o sucesso que o gênero tem com o público em geral.

Personagens simpáticos, tipos extremamente fáceis de compreender e de criar empatia tanto física quanto mentalmente. Os anseios dos protagonistas dessas obras falam dentro de todos nós, em qualquer idade ou época.

O eco das lições tiradas de obras como Rei Leão, Toy Story, Como Treinar o Seu Dragão, Meu Malvado Favorito, Divertidamente, A Bela e a Fera, Frozen ou Zootopia reverberam no imaginário pop, todos tem em suas matrizes a força de moldar nossas emoções diante da telona. Sorrisos e lágrimas são comumente arrancados em vários desses trabalhos.

Mas acho que ao longo de todos esses anos acompanhando animações em diversos graus distintos de dedicação, nunca havia prestigiado algo tão divertido, original e imersivo como Festa no Céu e suas estonteantes cores, formas e personagens.

Ao partir da inspiração do Dia de los Muertos, comemorado no México, Festa no Céu brinda os espectadores com uma bela tequila servida por um hermano de chapelão e bigodão.

Caricaturas a parte, Festa no Céu é uma animação que se propõe a fazer o que acredito ser uma das melhores funções de uma animação: arrancar sorrisos com uma história simples e cativante… e cumpre isso a contento quando desvela o que espera por nós depois da morte.

Festa no Céu | O Livro da Vida

Como falar de morte com e para crianças? Com uma animação que nos mostra, de forma divertida, que depois daqui há dois caminhos para nós: o Reino dos Lembrados (o Céu), onde tudo é festa e onde residem aqueles que são lembrados e homenageados no festivo Dia de Los Muertos de um lado, enquanto do outro está a Terra dos Esquecidos, aqueles que partiram e os quais não possuem quem possa lhes render homenagem no mundo dos vivos.

Cada um desses reinos possui seu regente: La Muerte em carne e osso – não pude evitar -, regendo o Reino dos Lembrados, Xibalba, regendo a cinzenta Terra dos Esquecidos, entre ambos o Homem de Cera, o encarregado de manter o equilíbrio entre o Reino dos Lembrados e a Terra dos Esquecidos, bem como criar as velas da vida em seu reino, a Caverna das Almas, a ligação entre os outros dois reinos que as pessoas conhecem quando deixam para trás a Terra dos Vivos.

As atribuições entre La Muerte e Xibalba fora definida há muitos ciclos, antes mesmo do homem existir, mas há diversão entre essas criaturas soberanas, há emoção, há o amor e as brincadeiras inocentes entre eles como há entre os casais enamorados. Uma brincadeira para ambos, mas algo suficiente para mudar os rumos do destino de qualquer ser humano na Terra… é essa a história do trio de protagonistas Manolo Sánchez, Joaquín Mondragon e Maria Posada.

Guillermo del Toro & Jorge R. Gutiérrez

Inocência, amor, amizade, coragem, trapaças, aventura, músicas, touradas, um simpático porquinho e uma gangue de pistoleiros. Pronto, Está feita uma das melhores coisas baseadas na cultura mexicana dos últimos tempos. Se bobear, talvez a melhor mesmo.

Não por a caso temos como produtor da obra o cultuado Guillermo del Toro que, nem precisaria dizer – mas vou dizer assim mesmo – é mexicano; na direção da animação temos Jorge R. Gutiérrez que, além de diretor, é animador, pintor e escritor. Portanto, não falta representatividade e local de fala em Festa no Céu. E melhor ainda, sabendo tirar proveito de clichês de uma forma extremamente positiva e original… sério, o México – que é o centro do universo – tem um imenso bigodão.

Dois heróis, uma heroína, um porquinho e as questões sobre vida e morte

Festa no Céu é uma história dentro de uma história e se inicia quando um grupo de adolescentes “do fundão” é levado para uma “empolgante” visita ao museu guiada pela bela Mary Beth que vai apresentar ao grupo de garotos um tour bem, bem diferente de tudo que já viram...

Ao levar os garotos para a ala do museu dedicada ao México, Mary Beth mostra aos garotos o Livro da Vida, a obra que registra todas as histórias do universo (você já sabe, tem o centro no México).

Mary Beth começa sua história pela infância do trio de amigos Manolo Sánchez, Joaquim Mondragon e Maria Posada que vivem na pequena cidade em forma de viola chamada San Ángel.

Cada um dos pequeninos com um belo futuro pela frente: Manolo será, assim como todo Sánchez, um grande toureiro conforme a tradição de sua família, mesmo que ele queira na verdade ser músico… Joaquín seguirá os caminhos do pai, o lendário Capitão Joaquín Mondragon Sr. que tombou em combate contra o terrível vilão Chakal… Maria irá estudar no exterior, fazendo prevalecer sua independência já mostrada ainda na infância nas brincadeiras com os dois amigos que queriam fazer o papel do cavaleiro que salva a donzela… não Maria, que faz questão de avisar aos dois amiguinhos que ela não precisa ser salva.

A singela amizade dos dois não passa despercebida pela dupla La Muerte e Xibalda que mais uma vez decidem brincar entre si como dois adolescentes enamorados. Só que o objeto de sua brincadeira é baseado no destino dos três amiguinhos ali no Dia de Los Muertos.

Se Manolo conquistar o amor de Maria, La Muerte se mantém como regente da Terra dos Lembrados, se Joaquín conquistar o coração da garota, então Xibalba se tornará o novo regente do reino festivo.

E assim se passam os anos após a viagem de Maria… Manolo passa sua vida às voltas com as cobranças do pai para ser o maior Sanchéz de todos enquanto dedica ao seu real interesse e vocação: a música.

Joaquín passa seus dias se dedicando a atingir o ideal de perfeição de seu pai em treinos e disciplina, o que ninguém sabe é que o pequeno garoto está de posse da Medalha da Vida Eterna, presente dado por Xibalba com claro interesse de trapacear sua aposta com La Muerte, permitindo que Joaquín se tornasse praticamente invencível. E não seria essa a única trapaça de Xibalba…

O dia da grande estreia de Manolo como toureiro coincide com o retorno de Maria à San Ángel e mais uma vez  amizade permeada de rivalidades entre o toureiro-violeiro e Joaquín se acende e intensifica com a beleza de Maria que retorna uma mulher cuja inteligência e independência só encontram rival em tal beleza.

Eu soube que ela lê livros, tipo, por diversão”

Comece assim a divertida jornada da dupla de amigos para conquistar a atenção de Maria da melhor forma possível: Monolo com sua música e sensibilidade, já que se recusa, para o desgosto do pai, a matar seu primeiro touro, enquanto Joaquín exibe suas medalhas e atos de bravura para impressionar a jovem e bela Maria. Tudo infrutífero…

Mas o Chakal está voltando e quer a Medalha da Vida Eterna a todo custo e San Ángel está correndo grave perigo…

Festa no Céu | A Vida, O Universo e Todas as Outras Coisas

Festa no Céu embarca seu espectador numa divertida aventura que desmonta as relações da disputa pelo amor da donzela e do triângulo amoroso ao mesmo tempo que fala sobre vida, morte, tradição, cultura, decisões, sacrifícios, família e aventura; tudo permeado com um dos visuais mais bonitos e coloridos que já vi em uma animação atual.

A quase totalidade da estética do desenho se baseia em mostrar p mundo como sendo feito pela estrutura de fantoches de madeira. Cada personagem é rico em detalhes completamente particulares, desde a “pintura” das roupas, adereços, formato dos rostos e “encaixe das articulações”, até a “costura” das roupas pintadas sobre as peças de “madeira” pode ser notada em várias situações ao longo do filme.

E claro, os cenários são um show particular na obra; ricamente detalhados, iluminados e coloridos tudo em Festa no Céu realmente parece uma grande festa.

E a excelência não para na parte visual apenas, a trilha sonora da animação empolga facinho em todas as ocasiões que se faz necessária para a narrativa. Destaque para o time lapse da infância de Joaquín e Manolo após a partida de Maria. Narra-se ali, com música e imagem uma trajetória que sintetiza a reafirmação do caminho dado aos dois heróis.

Mas a mágica aqui fica por conta dessa relação entre os fantoches, a história que vivem e as forças de vida e morte que nos guiam durante nossa trajetória pela Terra dos Vivos: somos fantoches controlados por forças, poderes, desejos e vontades além de nossas vontades, mas ainda assim somos e seremos sempre senhores de nossos próprios destinos e escolhas.

Quando cada um dos personagens decide por si mesmo que escolhas fazer ou não fazer, fica evidente a noção de que temos sobre nossas mãos o controle de nossos destinos e nossas vidas; por vezes até mesmo o controle das vidas daqueles que amamos.

Quando cada um dos protagonistas decide por si, também decide pelo outro, marcando esse outro com uma responsabilidade nova, por vezes permeada por compreensão, amor ou culpa por legados não pedidos, impostos ou negligenciados.

Maria buscando sua liberdade cada vez mais, livre das amarras de qualquer tentativa de ser só mais uma bela mulher que precisa arrumar um bom partido acaba se tornando uma grande líder de forma nata.

Joaquín lutando para ter uma fama cuja importância e grandiosidade rivalize com a lenda de seu pai se torna grande e importante ao abrir mão de seu ego em prol dos outros e Manolo, preso aos tradicionais costumes das touradas da família de seu pai acaba criando o próprio caminho aliando sua grande paixão, a música, com a tradição de sua família no último e derradeiro momento de seu caminho.

O show não está, claro, somente com os holofotes no aspecto humano da coisa toda. As entidades dos mundos além-vida são divertidíssimas e intercalam muitíssimo bem a estética do absurdo fantástico com o drama humano. Apesar de serem forças maiores que nós, as três entidades que regem os aspectos do nascimento, da vida e da morte são extremamente humanas e divertidas, lembrando a todos nós constantemente que até mesmo as “divindades” são projeções nossas e de nossos anseios, assim como nós somos o mesmo para eles.

Festa no Céu também nos presenteia com ótimas interpretações vocais do elenco de atores convidados para realizar essa tarefa. Meu destaque está com Xibalba, cuja voz é de ninguém menos que o figuraça Ron Pearlman. Claro, não vamos menosprezar nenhum dos outros talentos cujas vozes abrilhantaram outros personagens como Channing Tatum, Zöe Saldaña, Ice Cube, Diego Luna e muitos outros, incluindo-se o tenor Plácido Domingos em participação especialíssima.

Muitos temas e abordagem permeiam a duração do longa, alguns passarão despercebido na mente dos pequenos num primeiro momento, mas encontrarão ecos adianta sem dúvidas, pois Festa no Céu é uma dessas obras modernas que já dialoga com temas atuais e em voga nas rodas de conversas, livros, quadrinhos, redes sociais e claro, nas salas de aula.

Obviamente, como em toda animação, Festa no Céu termina bem e muito bem em todos os sentidos. Coeso e focado na história que quer contar, o longa animado alia bem as lições que quer passar aos espectadores com sua estética e seus temas. Não é fácil abordar a morte como um desses temas, mas o filme faz e faz com maestria essa abordagem, mostrando a nós que o fim de nossas vidas não necessariamente é o fim de nossa história, nem de nossos legados aqui na Terra dos Vivos.

E, para os pequeninos, por que não deixar acesa e viva a centelha de que algo melhor espera por nós ao final dessa etapa da jornada? O que é melhor? Uma grande festa infinita regada com cores e desfiles ao lado dos que amamos ou a escuridão da inexistência?

Não precisa responder, apenas assista e reassista Festa no Céu, senão ficou nenhuma lição, tudo bem, duvido que não tenham sobrado boas risadas…

Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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