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True Detective 2ª Temporada | Do céu ao inferno

A segunda temporada de True Detective (veja nosso especial para a primeira temporada AQUI) chega ao final de maneira polêmica, conturbada e dividindo opiniões; em alguns sites Nic Pizzolatto é elevado ao status de gênio pela brilhante primeira temporada para, em seguida, passar a ser uma possível fraude pela suposta “fraca” segunda temporada, tudo isso bem sintonizado com a velocidade da era digital, onde tudo vai do céu ao inferno em nanosegundos…

A segunda temporada de True Detective parece estar na mira deste fenômeno mundial que se chama insatisfação, gerada por excesso de expectativas ou idealizações ou, quem sabe, por estarmos desesperançosos mesmo…

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Porém os donos do espetáculo avisaram bem lá atrás, só os incautos não perceberam, não adianta comparar com a primeira temporada, pois o “truque” aqui se chama antologia, se ainda restam similaridades é por conta do tema e proposta, mas não espere uma reprise da primeira temporada, muito menos a existência de um personagem que surge ali com suas frases de efeito e seu pessimismo filosófico para abrilhantar a vida de Velcoro e Cia… não, aqui o jogo é outro, um jogo sim de pessimismo, de existência desesperançada, destroçada e obscura tal qual havia na temporada anterior, mas o caminho aqui é bem definido, as estradas da segunda investida do seriado buscaram sua própria identidade e rumos. Ainda bem que não sucumbiram a tentação de reprisar passo a passo os caminhos de Rust CohleMartin Hart, pois seria o caminho mais fácil.

Mesmo a aclamada primeira temporada, caso continuasse nos moldes normais de muitas séries talvez até perdesse todo o poder que exerceu no público, a antologia oferece este refugio, a primeira obra esta ali intocável, e abre passagem para ousar e arriscar e principalmente experimentar o novo, pois True Detective é isso, uma grande proposta regada de ousadia, em tempos de fórmulas preestabelecidas para tudo o que se faz, é bom ver que Pizollatto e a HBO seguiram o caminho mais arriscado, saindo da zona de conforto do que já ganhou seu espaço no gosto da crítica e do público. Manter o mesmo rumo seria destruir a originalidade de tudo feito na primeira incursão.

Cabe ressaltar que na época da exibição da primeira temporada não foram poucas as pessoas reclamando do material: chata, lenta, muitos diálogos e arrastada; esses foram apenas alguns dos primeiros termos e argumentos que voltaram a ser usados para avaliar negativamente a segunda temporada e, o mais curioso, é que depois muitos mudarem de opinião quando True Detective ganhou ares de produto revolucionário e cult, sobretudo quando as associações com o cultuado livro O Rei de Amarelo foram cada vez mais evidenciadas a cada nova resenha sobre o seriado e os aspectos filosóficos e até mesmo alguns conceitos agnósticos brotavam na percepção das pessoas que acompanhavam a investigação do misterioso assassinato tema da primeira temporada…

Um novo rumo dentro da decadência

Numa jogada mais que adequada Nic Pizzollatto e a HBO promoveram um show que raras vezes tivemos a oportunidade de presenciar, o formato de antologia dá oportunidade de expandir e vislumbrar outras possibilidades, outros mundos e principalmente, não ficar refém do caso da semana como é comum a estes seriados policiais cujas deduções mirabolantes surgem quase que por milagre ou por fruto de meia dúzia de procedimentos de análise forense extremamente descaracterizados e em velocidades surreais.

Aqui o material humano é o mais importante, o caso em si é apenas o pano de fundo para conhecermos os verdadeiros detetives, compartilharmos suas visões sobre o mundo onde vivem e tem que atuar como agentes da ordem em um sistema cínico, decadente e predatório…

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Se a primeira temporada de True Detective era uma narrativa sobre narrativas e ia de encontro aos excluídos, agora a série vai de encontro aos que estão diretamente dentro do sistema e fazem uso dele em benefício próprio. A corrupção dentro das esferas de poder na Lousiana de Rust e Marty era algo ligado a rituais de ocultismo, misticismo, abuso de um poder material, porém ritualísticos, não à toa a temporada de estreia foi pautada episódio por episódio nessas forças ocultas e sobrenaturais dos crimes rituais que nortearam a investigação do caso de Marie Fontenot

Mas a segunda temporada da série veio para seguir seu próprio rumo e mostrar uma corrupção essencialmente terrena, mundana, luxuriosa e que se deita nos benefícios do dinheiro sujo de desvio, tráfico, prostituição, jogo ilegal, licitações fraudulentas, corrupção policial e em todas as esferas da administração pública em um intrincado jogo de relações que atravessa o tempo e cruza a história dos próprios verdadeiros detetives desta segunda investida de Pizzolatto.

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São obras diametralmente opostas, do lúgubre e onírico interior da Louisiana somos jogados na escaldante e essencialmente mundana cidade fictícia de Vinci, Califórnia, um “esgoto a céu aberto” com o pior do que se pode encontrar em uma cidade grande, tendo como pano de fundo o crescimento urbano desenfreado e impessoal uma colagem contundente com muitos detalhes familiares, algo que ecoa e soa próximo a vida em qualquer “selva de pedra” pelo mundo a fora…

Se na Louisiana havia algo de inocente, simplório e um cotidiano comum de “cidade do interior”, a cidade fictícia de Vinci é puro caos social, perversão e indo em direção ao abismo social. Se a Lousiana da primeira temporada tinha algo de sobrenatural, espiritual e metafísico, Vinci é a pura materialidade e gozo dos prazeres da carne em plenitude, uma é alma, a outra é corpo.

A segunda temporada de True Detective tem seus primeiros episódios mais lentos realmente, até por contar com um número maior de personagens a serem desenvolvidos e contextualizados, os roteiristas investem em diálogos carregados e que se complementarão e encaixarão futuramente com o desenrolar da trama. Não há pressa aqui assim como não havia na temporada anterior, o ritmo do material geral se mantém e quem vê nisso motivos para reclamar, ou está sendo leviano em suas cobranças ou está se contradizendo, já que isso é emulado quase que episódio por episódio, tanto no roteiro de Pizzolatto quanto na direção de Justin Lin e demais diretores espalhados pelos episódios desta temporada que em muito se assemelhou ao estilo de Cary Fukunaga, gostem os chatos ou não, essa é uma verdade com que tem de conviver.

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Nesta segunda temporada de True Detective tudo é decadente e soa desesperançoso e se podemos resumir a temporada em uma única frase seria a que nos foi ofertada de forma certeira por Ray Velcoro em um dos primeiros episódios:

“Nós temos o mundo que merecemos”.

Isto se reflete na trajetória de cada peão deste intrincado, porém honesto, jogo que Pizzolatto nos convida a participar. Velcoro (Colinn Farrell), Bezerrides (Rachel McAdams) e Woodrugh (Taylor Kitsch) se tornam párias a partir do momento que flertam com uma possível negação deste status quo de um sistema corrupto, mas que ao mesmo tempo sabe recompensar quem abraça suas regras, os verdadeiros detetives passam a trilhar uma estrada perigosa e essencialmente solitária, estradas essas que sempre estão presentes nos belíssimos planos aéreos das veias de asfalto de Vinci, nas quais encontros e desencontros se tornam constantes no desenrolar da trama, caminhos que inevitavelmente vão levar a um fim que talvez não seja o mais desejado, nem pelos personagens nem pela audiência, fim árido como o solo de Vinci, mas que talvez seja o que todos merecem… “eu que me foda”, diz a si mesmo, por exemplo, Velcoro ao se deparar com jovens brincando nas águas de despejo em uma enorme vala a céu aberto.

Erguendo os pilares para depois ruí-los

A primeira metade da série busca construir e consolidar o mundo dos personagens principais, é praticamente uma meia-temporada de contextualização e aprofundamento dos personagens. O decadente Velcoro, a conturbada Bezerrides, o frágil Woodrugh e o implacável e obsessivo Frank são desnudados, camada por camada: suas motivações, anseios, desejos, suas virtudes, medos e limitações são apresentados de forma a nos tornar cada vez mais íntimos dessas pessoas cujas falhas e escolhas transbordam nas suas falas e nas relações que esses protagonistas travam entre si e com seus familiares, amigos e amores… e perceber que são pessoas como nós, que tem que lidar com seus dilemas ou pior, ficarem paralisados ao ter que fazer isso, mas ao mesmo tempo perceber quão inevitável é esta catarse, afinal você tem que prosseguir pela estrada…

A série ganha um outro ritmo após o episódio 04 (Down Will Come), encerrando com uma cena de tiroteio pra lá de intenso e catártico, a culminância de um processo mal engendrado e que quebra de vez nossos verdadeiros detetives. Nossos  anti-heróis perdem força neste jogo de trapaças, cada um é levado a expiar seus pecados em uma cidade onde o poder subverte qualquer boa intenção! Toda a estrutura que dava suporte aos seus atos acaba ruim pela força com que a corrupção move montanhas para não ser afetada no jogo de poder envolvendo a morte de Ben Caspere.

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Aqui cabe um momento de destaque, Vince Vaughm como Frank Semyon, entrega uma das melhores surpresas da segunda temporada, conseguindo nos cativar com a trajetória do implacável e ganancioso mafioso que vai do céu ao inferno, mas de uma obstinação sem limites quando se trata de sobreviver a todas as artimanhas impostas pela perigosa cidade de Vinci, ele passa a comandar o show após o fatídico tiroteio, é Frank o personagem que tem o melhor desfecho entre os quatro personagens: a cena de sua caminhada  no deserto é memorável e para os que gostam de comparações, não deve em nada aos devaneios da primeira temporada…

E, quando tu contemplares o abismo…

O grande contraste que a segunda temporada promoveu é toda esta desesperança e sentimento de fracasso, por ser demasiadamente terrena e mostrar o mal de uma forma contundente e desesperadamente vulgar e banal, sem recursos sobrenaturais ou um vislumbre onírico, até quando usou estes recursos foi crua e rude como na profética quase morte de Velcoro (na virada do segundo para o terceiro episódio da temporada) e com o final de Frank, a verdade é que nós escolhemos trilhar o caminho, ou se preferir a estrada da maldade, o peso do livre arbítrio…

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Guiados por motivações adversas, cada um dos protagonistas foi ampliado em suas personalidades por um elenco impecável de coadjuvantes e pequenas tramas pessoais que humanizaram ainda mais cada um deles. A relação conturbada com o pai e a irmã, a busca por um filho para herdar um império, a busca por conforto e aceitação de si mesmo, o combate feroz pelo amor do filho que pode nem ser biologicamente seu… seres atormentados por suas escolhas e afastados de seus respectivos mundos justamente pela manutenção dessas mesmas escolhas: ser você e ter o que você quer mesmo que isso o afaste de tudo. Se na primeira temporada a tônica era narrar uma história dentro de outra história, a segunda temporada de True Detective tem como tônica a narrativa sobre a distância que existe entre os seres humanos e o vazio ampliado que isso coloca dentro de nós.

“12 anos, o meu rabo. Vai se foder.”
(Ray Velcoro)

E, caso seja necessário, apontar aqui ou ali um subtexto recorrente, acredito que seja o tema da paternidade, recorrente episódio por episódio nesta segunda temporada e caro a todos os quatro protagonistas em diferentes graus, mas assim presente em suas vidas e escolhas. Pouco sei da vida pessoal de Pizzolatto, mas é evidente seu apreço por esse tema desde a primeira temporada em que seus dois protagonistas também possuíam relações de paternidade conturbadas: Rust pela morte prematura de sua filha Sophia, Marty pela relação distante com as filhas e o fim de seu casamento por conta de suas escapulidas em busca de jovens moças como amantes…

Nos labirintos de Vinci, não nos de Carcosa

Com um roteiro extremamente complexo, com um elenco grande de protagonistas (quatro contra dois da anterior) e todos os núcleos de coadjuvantes envolvidos em diversas instâncias, a segunda temporada pode ter dado nós em cabeças por aí desviando a atenção do espectador para os rumos e os culpados da morte de Caspere e de todo o caos que ela gerou. Guerra de facções mafiosas, corrupção nos escalões de chefia da polícia de Vinci, um prefeito alcoólatra, tráfico de influência, licitações fraudulentas, prostituição, drogas, armas… toda sorte de crimes sociais possíveis e imagináveis permeava cada ato de cada um dos personagens.

Que o público até opte pelo caminho infrutífero da comparação, mas há de se convir que o material desta segunda temporada é extremamente calcado na estética da narrativa Noir, um estilo de narrativa policial extremamente pessimista, lento, detalhista e cheio de carga psicológica envolvendo crimes de assassinato, desaparecimento e excuções que flertam com a chegada de mulheres fatais, gansters, policiais corruptos, jogatina, prostituição e claro, detetives decadentes trabalhando às margens do sistema para cumprir sua vocação de verdadeiro detetive. Analisar e julgar esta segunda temporada sem sequer pensar nessa estética como coluna dorsal do material é injusto, para dizer o mínimo, com o que nos foi entregue.

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Gostos a parte, o material de Pizzolatto continua acima da média, há firmeza no discurso, nos temas, tudo guiado por roteiro forte que não se prende nas soluções fáceis nem na resolução palatável, um roteiro complexo e intrincado, labiríntico como as vias de Vinci; um elenco mais uma vez afinado sustentando os conflitos densos e os dramas cotidianos de cada um dos envolvidos em um imenso esquema de corrupção, reviravoltas tensas sempre colocando em xeque a possibilidade de uma resolução positiva em um mundo extremamente negativo; ótimas cenas de ação contrapondo com outras tantas cenas cuja carga emocional era fortíssima. O criador de True Detective sabe sim o que faz e mais uma vez entregou um material que vai de encontro ao conformismo do segmento de seriados que, quando ousa desagrada por mudar demais, porém quando mantém a mesma pegada desagrada por não ousar…

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Mais uma vez True Detective é um material autoral, nasce, cresce e cumpre seu papel de forma autocontida, direcionada em sua estrutura de antologia cuja premissa é sempre uma investigação complexa guiada por pessoas comuns em meio ao caos de suas vidas pessoais, seus trabalhos, suas angustias e escolhas. Antes de ser um seriado policial, True Detective se mantém firme e forte como uma narrativa sobre pessoas em primeiro plano, mas acima de tudo uma narrativa sobre os monstros dentro dessas pessoas e sobre demônios humanos ao nosso redor. Na primeira temporada isso era algo onírico, quase que totalmente sobrenatural, nessa segunda temporada o mal ganha contornos bem definidos na forma de seres humanos que desejam a todo custo cimentar mais e mais suas bases de poder dentro do caos do sistema que criaram e que os protege, que os beneficia mesmo que alguém tenha de ser duramente destroçado no processo.

Que venha a próxima temporada com mais mudanças, mais diferenças, mais personagens instigantes e cheios de falhas e qualidades tão comuns quanto a de qualquer um de nós. Pizzolatto sabe o que está fazendo, a grande questão agora é: as pessoas sabem o que estão assistindo?

Lista de episódios

  1. The Western Book of the Dead
  2. Night Finds You
  3. Maybe Tomorrow
  4. Down Will Come
  5. Other Lives
  6. Church in Ruins
  7. Black Maps and Motel Rooms
  8. Omega Station

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