O circo do Dr. Lau, o maior espetáculo da Terra!

Há coisas que marcam a vida de uma criança e acompanham seu caminho por toda sua existência, O circo do Dr. Lau é uma dessas coisas pra mim. Foi assim quando vi pela primeira vez em uma Sessão da Tarde muito distante o fascinante filme “As sete faces do Doutor Lau”.

Aquele mundo de mitos, lendas e seres fantásticos me encantou e foi através dele que conheci muitas criaturas até então desconhecidas e me interessei em conhecer mais profundamente outras mais, por assim dizer, famosas para uma criança de, não lembro ao certo, uns seis ou sete anos de idade.

O Circo do Dr. Lao. Venham todos! 

No final de março de 2012, mais de 20 anos depois, descobri numa prateleira de livraria um volume modesto, destes que contam umas 180, 190 páginas com uma capa com o desenho de um fauno belamente colorido com cores quase puras do CMYK (Cian, Magenta, Amarelo e Preto) e simulando um erro de registro de impressão com cores “deslocadas” que davam um ar de coisa antiga. Um tira adornava a capa com a seguinte frase:

“Charles Finney convida para o Circo do Dr. Lao – A estréia do circo é hoje. Venham! Venham! O maior espetáculo da terra!”

A bela capa por si só atraiu minha atenção pelo excelente trabalho de design gráfico e uso de uma tipografia que imita as tipografias dos antigos circos mambembes, adornos, as cores e claro, a própria frase por si só eram um convite e em conjunto, uma provocação.

Circo do Dr LaoMas foi o nome do circo que me cativou como uma criança novamente: o Circo do Dr. Lau… Mordi a isca de ser cativado pela capa e fui checar se o Dr. Lau do livro era o mesmo do filme de minha infância.

Eram exatamente a mesma pessoa, o mesmo chinês velho e cheio de mistérios que trazia seu circo para a pequena cidade de Abalone no interior do Arizona nos Estados Unidos.

Lembrei da antiga lição da infância: sempre se pode ensinar novos truques a um macaco velho. Conheci o magnífico trabalho de Charles Finney, jornalista, nascido em 1905, falecido no ano de 1985, considerado um dos criadores do estilo literário Dark Fantasy que mistura fantasia, mitologia, superstições com doses de suspensa e situações sinistras.

O livro “O circo do Dr. Lau” de 1935 inspirou o filme “As sete faces do Dr. Lau” de 1964 e popularizou a obra de Finney no mundo todo, mesmo não sendo considerado um grande filme em sua época.

Ah, a lição que aprendi? Sempre se pode conhecer “novos” autores antigos cujos maravilhosos livros estavam no limbo editorial brasileiro… (na verdade aprendi isso com “Uma princesa de Marte” de Edgar Rice Burroughs, mas precisava dar um ar dramático a mais neste texto).

Até então a obra de Finney era inédita em nosso idioma e a editora Leya nos presenteia com esta edição caprichada no visual e com um preço para lá de convidativo: R$ 18,90. Isso mesmo, por menos de R$ 20,00 tem-se em mãos um clássico da literatura universal de fantasia. Até mesmo os nerds de mesada podem ter seu exemplar dessa maravilha.

Venham leitores, prestigiar o maior espetáculo da Terra!

A história do livro é simples. Um circo, o mais diferente de todos, chegou à pequena e pacata cidade de Abalone no Arizona prometendo um espetáculo como nunca se viu anunciado no jornal de maior circulação na cidade. Assim Finney começa a nos apresentar seus personagens humanos, cada um tendo sua leitura do anúncio do jornal “A Tribuna Matutina”.

Cada um cativado por uma atração, por um mistério, por uma fantasia ou por mera curiosidade no curso de suas vidas até então apáticas e banais.

Um desfile inicial passa pelo centro da cidade com três modestas carroças levando o Dr. Lau, uma gigantesca serpente, um unicórnio dourado, um lobisomem em uma jaula, uma esfinge e um fauno…

O Circo do Dr Lau
Detalhe fotografado do encarte que simula o anúncio de jornal sobre O Circo do Dr. Lau. Belíssimo trabalho gráfico que aplica de forma perfeita a tipografia ao estilo dos circos do começo do século XX. O exemplar fotografado é meu, óbvio… 😀

Apesar da modéstia do cortejo de convite, os moradores de Abalone foram cativados pelas estranhas criaturas e não se furtaram a comparecer ao espetáculo de abertura do circo em seu primeiro dia. E assim começa a jornada para o encontro entre o ser humano normal e as mais variadas e incríveis criaturas da mitologia, das lendas, das fantasias folclóricas…

A obra de Finney é puro confronto entre o comum, o banal, o trivial contra o que há de mais estranho, incrível e perturbador na imaginação das pessoas, só que materializado diante delas.

A vida comum abre espaço para que o estranho e fantástico tome de assalto suas noções de mundo, de realidade e de mudanças, tirando cada um dos visitantes de suas zonas de conforto, de hábitos, de rotinas.

A Medusa, o fauno, a gigantesca serpente marinha, a esfinge, o lobisomem, o mago Apolônio, o ovo do pássaro roca, a Quimera, a sereia, o cão das estepes que é metade vegetal e metade animal, o unicórnio e o próprio Dr. Lau são as representações de tudo que é necessário para mudar o estado de espírito dos moradores de Abalone, partindo-se do seu cerne para sua casca mais externa.

O Circo do Dr Lau
Detalhe de uma divisória de capítulo do livro que emprega também belas ilustrações e adornos.

Tive, ao ler o livro, uma sensação similar a de minha infância diante do filme, só que desta vez de uma forma mais ampla e mais completa, pois Finney escreve muitíssimo bem e vai colocando os pontos de vistas dos vários personagens com seus conflitos diante do mundo estranho do circo.

Claro, o passar dos anos e a soma de outras leituras e conhecimentos tornaram a leitura do livro algo mais completo e elaborado.

Minha própria admiração sobre o universo de um circo por si só já valeu a leitura e a fantasia envolvida na história do livro me fez entender de onde vieram ideias como Hellboy, Monstro do Pântano e tantas outras maravilhas contemporâneas da dark fantasy.

Ao colocar várias criaturas mitológicas e fantasiosas sob o circo do Dr. Lau e fazer o mesmo contar como as capturou é uma leitura agradável, leve e divertida, as doses de tensão e de curiosidade dos personagens vão transbordando destes para o leitor de forma fluída como nos contos mitológicos em que seres como os faunos e sereias exerciam seus encantos sobre os mortais.

Divertido, irônico, misterioso, belo, assustador e, por que não dizer, melancólico, o circo do Dr. Lau é um convite à reflexão sobre nós mesmo, sobre o que somos e o que deixamos de ser, no que acreditamos e principalmente no que deixamos de acreditar.

Leitura leve, porém longe da obviedade da lição moralizante piegas e simplória, mas consciente do seu papel de texto inteligente, o livro se guia sozinho, se desnuda sozinho para nós e acima de tudo carrega em suas páginas a lição de que todo livro precisa, sobretudo, refletir seu tempo e acima dele qualquer tempo vindouro.

Finney, Dr. Lau, os moradores de Abalone e todas as criaturas fantasiosas e mitológicas presentes nas páginas desta obra magnífica superaram o teste do tempo e continuam tão atuais quanto eram no seu surgimento. Comprem seus ingressos, a temporada é curta, mas vale canda centavo.

Link do livro na editora Leya AQUI

Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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